A Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (ATRAC) divulgou uma nota em repúdio ao tratamento dado pela imprensa e órgãos públicos em desrespeito à morte de Soraya Oliveira. “Jornais e portais não respeitaram a identidade de gênero e o nome dessa vítima, divulgando seu corpo como se fosse do sexo masculino. Soraya era uma mulher com nome e gênero retificados em cartório e ainda assim teve sua identidade feminina negada”, disse a Associação em nota.

O corpo de Soraya foi encontrado da lagoa da Maraponga, em Fortaleza, em 12 de julho. Havia marcas de lesões provocadas por arma de fogo segundo a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS). A divulgação da Secretaria e da imprensa, como informou a Atrac, não respeitou a identidade de gênero de Soraya mesmo ela tendo o nomo de registro civil retificado. “A mídia local desrespeitou e matou Soraya novamente quando não reconheceu sua mulheridade”.

 

Leia abaixo a nota completa da Associação:

CARTA ABERTA À SSPDS CE E AOS JORNAIS E PORTAIS DE COMUNICAÇÃO SOBRE O DESRESPEITO À IDENTIDADE DE SORAYA OLIVEIRA SANTIAGO

Nesta semana, o movimento de travestis e transexuais teve a triste notícia do assassinato de Soraya Oliveira, uma mulher trans, profissional da beleza e sobretudo humana. A partida de uma pessoa LGBTQIA+ já é de grande dor, e a situação se agravou quando os jornais e portais não respeitaram a identidade de gênero e o nome dessa vítima, divulgando seu corpo como se fosse do sexo masculino. Soraya era uma mulher com nome e gênero retificados em cartório e ainda assim teve sua identidade feminina negada.

Apesar de nosso contexto nacional da subnotificação da violência transfeminicida, segundo o “Dossiê dos Assassinatos e da Violência Contra Pessoas Trans Brasileiras”, da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o Brasil já chega a 89 assassinatos de pessoas trans no primeiro semestre de 2020, o que representa um aumento de 39% em relação ao mesmo período do ano passado.

O que há por trás da desumanização dos corpos trans e travestis? Por que, mesmo após a morte, temos nossas identidades de gênero deslegitimadas? Lembremos de Dandara, que teve o vídeo da sua morte viralizado nas redes sociais, perpetuando assim a crueldade com nossos corpos. Dandara, assim como Soraya e tantas outras, também teve seu nome e identidade violados após sua morte.

Como esquecer das mortes de travestis e transexuais que, quando noticiadas na TV, são tratadas como homens, como gays e muitas vezes, mesmo sendo vítimas da violência, são apontadas como culpadas. A imprensa, de uma forma geral, ao invés de apresentar os nomes retificados ou sociais das vítimas insiste em lembrar nomes que não representam suas identidades, nos negando o direito ao reconhecimento de nossas identidades, conquistado de forma tão árdua pela população trans. Segundo dados da Antra, em 2019, 29% dos casos notificados não respeitaram a identidade de gênero das vítimas e 91% dos casos expuseram seu nome de registro, muitos deles sem menção ao nome social.

O sistema continua nos impondo que ser trans ou travesti no Brasil é viver na marginalidade e portanto, ser violentada cotidianamente. Queremos viver de forma digna, superar a expectativa de vida imposta pelo sistema, trabalhar, ser felizes. Soraya vinha construindo sua vida assim, provando pra esse sistema que travestis e transexuais podem ocupar outras esferas da sociedade. Era uma grande profissional da beleza e mantinha seu salão em Fortaleza com muito trabalho. Havia alterado, há um ano, seu nome e gênero em seus documentos oficiais. Era amada por suas amigas e considerada um exemplo de luta e resistência praquelas que lhe rodeavam. Foi brutalmente assassinada. Não uma, mas duas vezes. A mídia local desrespeitou e matou Soraya novamente quando não reconheceu sua mulheridade. E que mulher! A desumanização que tocou o corpo e a história de Soraya toca várias outras travestis e transexuais. Seja pela negação ao acesso ao banheiro feminino, seja pelo erro do pronome usado nas conversas informais, pelas mortes marcadas por altos índices de violência.

O caso de Soraya nos coloca a pensar quem são os responsáveis pelo desrespeito à identidade de Soraya e de tantas outras depois de suas mortes. É responsabilidade da Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará (SSPDS CE), que tem a obrigação de verificar corretamente os registros sobre nossas identidades de gênero antes de tornar essas informações públicas e também o dever de reconhecer e registrar corretamente os casos de transfobia como transfobia para que possamos ter reais estatísticas sobre esses crimes. É urgente cumprir a efetivação da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26 e do Mandado de Injunção (MI) 4733, reconheceu a discriminação da população LGBTQIA+ como uma forma de racismo. É urgente a notificação verdadeira de crimes de transfobia no Estado do Ceará!

Propomos então que a Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social do Ceará afirme publicamente um compromisso com o respeito às identidades trans e que invista na formação de seus profissionais sobre Direitos Humanos. É necessário também que haja uma postura de dedicação à efetivação das investigações desses crimes. Ainda segundo dados trazidos no dossiê da Antra, no ano de 2019 foram confirmadas informações de 124 assassinatos de pessoas trans. Destes, encontramos notícias de que apenas 11 casos tiveram os suspeitos identificados, o que representa 8% dos dados, e que apenas 7% estão presos.

Esse contexto é responsabilidade também dos jornais e portais que noticiam as mortes sem fazer um trabalho de apuração jornalística digno e, só assim, depois de ter certeza dos fatos, publicizar a notícia. E é responsabilidade, sobretudo, de uma estrutura transfóbica e violenta que é constantemente construída contra nossas vidas, mas que lutamos todos os dias para que acabe.

Exigimos dos jornais e portais que noticiaram o falecimento de Soraya a retificação imediata das matérias publicadas e recomendamos que revejam a participação de travestis e transexuais em seu quadro de profissionais de comunicação; que procurem pessoas do movimento para prestarem, de forma remunerada, consultoria para seus materiais; e que invistam na formação sobre Direitos Humanos de seus profissionais.

Almejar uma vida digna não era pra ser algo tão complexo, inalcançável. Choramos as mortes de nossas irmãs dia após dia. Mas, por entre as lágrimas, não nos calaremos e não permitiremos essas violências com nossos corpos e nossas histórias. Estamos aqui reafirmando, enquanto Associação de Travestis e Mulheres Transexuais do Ceará (ATRAC), nossa missão de buscar a melhoria da qualidade de vida de travestis e transexuais do Ceará por meio da construção permanente de suas cidadanias e da luta pela garantia de seus direitos.

Reforçamos que o caso de Soraya está longe de ser um caso isolado. Ele faz parte de um contexto de violência que acomete sistematicamente os corpos de pessoas travestis e transexuais no Brasil. Nos reerguemos mais fortes cada vez que uma nossa cai. Por Soraya Oliveira Santiago, Dandara Kettlyn de Velasques e tantas outras, que seus nomes sejam lembrados e suas identidades respeitadas. Não permitiremos o apagamento de nossas histórias!