É impossível compreender a agricultura quilombola sem compreender a história do quilombo, do povo negro no Brasil

Foto: Divulgação/Macucultura

Por Fran Paula

A imagem distorcida sobre os quilombos no Brasil há muito tempo está meramente associada a espaços que surgiram a partir da fuga da escravidão, ou descritas como tentativas frustradas dos negros pela tomada do poder. Reduzindo, assim, a constituição do quilombo a uma ação desordenada na busca por liberdade. Contudo, em meio à guerra colonial contra a população negra, havia levantes e resistências contra-hegemônicas. O quilombo é uma delas.

Reduzir o quilombo a espaços ociosos resultantes da fuga de escravos é colaborar com a mesma lógica colonial e racista que reduz a potência e a força dos negros no Brasil até os dias atuais.

O Quilombo em Guerra contra a ordem social!

Beatriz Nascimento (1942 – 1995), em seus escritos em sua trajetória de luta enquanto quilombola e intelectual, descreve os quilombos como um assentamento social, uma nova ordem contra-hegemônica à estrutura escravocrata do período colonial. Ou seja, o quilombo como parte de um processo insurgente no Brasil está muito além da fuga.

Torna-se, assim, evidente a necessidade de analisarmos a fundo as estratégias sociais e políticas embutidas na constituição dos quilombos do século XVI, e ainda presente nas mais de 5.972 comunidades remanescentes de quilombolas existentes no Brasil (CONAQ, 2022).

…estabelecido em um espaço geográfico, presumivelmente nas matas, o quilombo começa a organizar sua estrutura social interna, autônoma e articulada com o mundo externo. Entre um ataque e outro da repressão oficial, ele se mantém ora retroagindo, ora se reproduzindo. Este momento chamaremos de Paz quilombola, pelo caráter produtivo que o quilombo assume como núcleo de homens livres, embora potencialmente passiveis de escravidão (NASCIMENTO, 2018. p76).

Desde o século XVI, os quilombos resultaram de estratégias de auto-organização, diante das violências e ameaças que o sistema escravocrata estabelecia. Uma das principais foi a organização para a produção de alimentos.

Modos de Produzir, comer e viver em paz!

O papel da produção de alimentos na manutenção da paz quilombola se tornava uma estratégia fundamental, tanto para o consumo interno quanto para a produção de economias externas e na defesa do território.

Sob o comando de Tereza de Benguela, o quilombo do Quaritere abrigou mais de 100 pessoas entre indígenas e negros, localizado em um território de difícil acesso no Pantanal, onde foi montado um forte aparato de defesa e um parlamento para decidir em grupo as ações da comunidade.

Tereza de Benguela comandou a estrutura política, econômica e administrativa do quilombo, mantendo um sistema de defesa com armas trocadas por alimentos. Viviam do cultivo de algodão, milho, feijão, mandioca, banana, e da venda dos excedentes produzidos.

Conhecer o território, produzir alimentos, conservar as florestas eram medidas de sobrevivência e proteção, considerando as perseguições que se intensificavam com as fugas (CASTRO, et. al, 2021. p.44).

Diante disso, na busca de melhor compreender a agricultura reproduzida nos quilombos de Mato Grosso, mais especificamente no território da baixada pantaneira, tenho encontrado fundamentos que me provocam a ampliar o olhar além das práticas culturais e técnicas de manejo de roçados coletivos meramente para produção de alimentos nessas comunidades.

Não escolhi este local para estudo, fui escolhida por ele. Foram as raízes do quilombo Campina de Pedra, no município de Poconé, que me fizeram quilombola antes mesmo de ser agrônoma.

É desse lugar que considero impossível compreender a agricultura quilombola sem compreender a história do quilombo, do negro no Brasil.

São uma diversidade de práticas agrícolas empregadas desde o manejo da terra ao preparo do alimento que carregam processos que são passados de geração em geração, mas que alimentam também a estrutura social das comunidades.

Práticas que são adaptadas e aprimoradas ao longo dos anos. Portanto, precisam ser analisadas de forma conjunta e dentro de uma temporalidade.

Quando falamos em tecnologias ancestrais estamos também situando esse processo histórico e dinâmico no tempo, não como algo atrasado do passado, como insistem em rotular.

O tempo é uma variante importante nesses sistemas de agricultura tradicional. Considero um equívoco a compreensão de muitos ao adentrar nestes territórios que focam em uma análise fixas dessas práticas, como se os conhecimentos do manejo da terra, da produção de alimentos saudáveis fosse algo daquele momento histórico, desconsiderando que esses passos vêm de longe, assim como a relação desses povos com a terra, com a natureza e com as florestas.

Os efeitos da colonização e escravização no Brasil seguiram ameaçando a paz quilombola nos pós-abolição, principalmente através dos mecanismos racistas adotados e reproduzidos pelo Estado Brasileiro, que legitimou de diversas formas a violência contra os quilombos e sua população negra.

Cabe aqui citar a Lei de Terras de 1850, que privou a população negra do acesso à terra e ao território e de possibilidades de reprodução social de seus modos de vida.

A PAZ QUILOMBOLA NA ATUALIDADE!

A não regularização fundiária dos territórios quilombolas são fatores que ameaçam a paz quilombola nos dias atuais, bem como a não garantia de direitos básicos à sobrevivência da população negra, entre eles, o acesso à terra e ao alimento. Inúmeros dados demonstram que são estes grupos sociais os mais vulneráveis à fome e à violência no país.

Os últimos dados do Censo Agropecuário (2017) explicitam a manutenção do racismo fundiário no Brasil, onde a terra continua concentrada na mãos de proprietários brancos. E quanto mais se aumenta o tamanho da propriedade de terra, menos negros são produtores rurais.

O resultado da desigualdade de distribuição de terra no Brasil é significativo: produtores brancos ocupam 208 milhões de hectares – quase 60% de toda a área das propriedades rurais registradas pelo IBGE.

Para Castro (2023), as permanentes ofensivas sobre estes territórios desencadeiam conflitos e mortes em diversas regiões do país. Nas áreas rurais, em relação a 2020, houve um aumento de 18% de despejos, 215% da destruição de casas e 43% da destruição de roças de alimentos (CPT,2022).

O censo do IBGE em 2023, pela primeira vez, recenseou a população remanescente de quilombos no Brasil. Os dados apontam para a presença de 1,32 milhão de quilombolas no Brasil, porém, apenas 4,3% da população quilombola reside em territórios já titulados no processo de regularização fundiária (IBGE, 2023).

Segundo a CONAQ, o aumento da violência contra lideranças quilombolas é crescente no Brasil. Na última década, pelo menos 30 lideranças quilombolas foram assassinadas defendendo seus territórios (CONAQ, 2023).

A guerra continua contra os corpos e territórios negros no Brasil. A estrutura racista persistente na sociedade brasileira segue impondo um conjunto de adversidades que ameaçam a paz quilombola.

Rio de Janeiro, 20 de novembro de 2023.