Por Melina Flynn, fotos de Rafael Vilela da Mídia NINJA

A ordem Franciscana, no centro de São Paulo, viu aumentar em quase 500% a demanda de marmitas nos primeiros meses da pandemia.

A fome é a mais cruel das consequências da pandemia em todo o mundo.

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 132 milhões de pessoas podem se juntar ainda em 2020 às quase 690 milhões de pessoas que passaram fome em 2019. O anúncio do aumento, agravado pela crise sanitária do coronavírus, veio no Dia Mundial da Alimentação, na última sexta-feira, dia 16 de outubro.

Nas ruas da capital mais rica e populosa do Brasil, esta realidade não parece ser novidade. No Largo São Francisco, região Central de São Paulo, uma fila de pessoas em situação de vulnerabilidade se forma diariamente à espera de um prato de comida – para a maioria, a única refeição do dia.

Milhares de pessoas fazem fila para receber um prato de comida no Largo São Francisco, em São Paulo, durante o domingo de Páscoa.


Com a chegada da pandemia, o número de pessoas na fila aumentou assustadoramente. “São mais de 3.000 refeições distribuídas todos os dias somente neste ponto”, diz frei João Paulo de Moraes, do Serviço Franciscano de Solidariedade, o Sefras. Antes da pandemia, o número de refeições distribuídas ficava entre 400 e 500.

Dados do IBGE mostram que, entre os anos de 2017 e 2018, pelo menos 10,3 milhões de pessoas moravam em um domicílio com insegurança alimentar grave, que é quando o acesso e a disponibilidade de alimentos são escassos. O número, no entanto, não inclui pessoas em situação de rua.  

O Frei João conta que a fila, que hoje dobra o quarteirão, antes da pandemia era inteira formada pela população de rua. Já hoje é possível encontrar diferentes histórias e identidades por trás de cada rosto: moradores de ocupação, pessoas desempregadas, mães, entregadores, idosos.

 

Maria entra na ocupação em que vive com sua família após se alimentar com uma doação de marmita, no centro de São Paulo.


Maria Alice, mãe de dois filhos e moradora de uma ocupação na região, é uma dessas pessoas. Ela era auxiliar de serviços gerais em um empório na zona Norte. Por causa da pandemia, perdeu seu posto de trabalho e até hoje não conseguiu ter acesso do benefício emergencial de R$600 oferecido pelo governo federal.

Para a antropóloga Lis Furlani Blanco, doutoranda da Unicamp que estuda as definições do conceito de fome, a fome endêmica nunca deixou de existir no Brasil e no mundo, já que é resultado de processos sócio-econômicos estruturais.

“Fome é um processo. Vai desde o risco de fome e a preocupação que esse risco causa nas famílias até o momento de privação de alimento. Inclui mudança nos hábitos alimentares e consumo de alimentos hipercalóricos e pouco nutritivos mas que tem preços mais acessíveis, alimentação através de sobras de comida, impossibilidade de escolha alimentar, consumo de um só tipo de alimento por muitos dias, redução da quantidade de alimentos e também da variedade”, explica.

 

Após coletar doações de marmitas na Praça da Sé, Fernando e seu colega de trabalho, Artur, se preparam para mais um dia de trabalho nos aplicativos.


Fernando Pereira, natural de Guarulhos, é outro personagem da vida real que ilustra a situação: “Empreendia no Chile, onde tinha uma agência de viagens. Me mudei para Miami, onde trabalhei como Uber e, no começo do ano, tive que voltar ao Brasil.” Hoje mora numa pensão na região da Liberdade, também no Centro da cidade, trabalha como entregador de aplicativos e conta com as doações de alimento espalhadas pelo centro da cidade para se alimentar. “Senão, não rende”, afirma.

Um relatório da ONU divulgado em julho deste ano afirma que o choque econômico e de saúde provocado pela pandemia causou perda de renda, interrupção da cadeia de suprimentos e aumento dos preços dos alimentos. O mesmo relatório estima que o número de pessoas com desnutrição no mundo continuaria a crescer e chegaria a 840 milhões até 2030. Com o coronavírus, a previsão é que o número pode ultrapassar os 900 milhões na próxima década.

 

Diego Alberto dos Santos Jesus tem 24 anos e mora em uma ocupação do MTST em São Paulo. Seu barraco de madeira de apenas um cômodo possui poucos móveis, entre eles um fogão desativado e uma mochila da Rappi, que utiliza para guardar alimentos. Sua alimentação só é garantida pela cozinha comunitária da ocupação, que recebe doações.


Para Rafael Cortez, Doutor em Ciência Política pela USP, numa visão mais macro, o tipo de consumo foi alterado. A inflação também respondeu às mudanças de oferta e demanda nas cestas básicas de consumo, o que gerou encarecimento de preços de determinados alimentos. Isso tem resultados diferentes nas diversas camadas sociais, afetando primeiro e mais profundamente os mais vulneráveis. 

“O Brasil tem uma situação especialmente delicada, porque vai entrar em 2021 com amarras fiscais, com gastos públicos altos e dívida elevada, além, claro de uma questão social bem grave”, afirma Cortez sobre o que nos espera no futuro.

 

Sopão das Manas, iniciativa criada durante a pandemia por cozinheiras de São Paulo, distribui alimentos em favelas do Jaguaré próximas à Marginal Pinheiros.


É consenso entre economistas e especialistas que a disparada do preço dos alimentos foi causada por um conjunto de fatores, como maior demanda durante a pandemia, aumento das exportações por causa do câmbio favorável e variações nas safras de produtos. 

Outro ponto essencial neste cenário é a forte demanda chinesa por commodities, ou matérias-primas. Logo, exportadores brasileiros acabam se beneficiando pelo aumento da demanda e, muitas vezes, deixando o dinheiro – e a comida – fora do país.

 

Preços altos e supermercados vazios durante o período de quarentena em São Paulo.


Em contrapartida, iniciativas sociais e voluntárias espalhadas por toda a cidade servem como uma única sustentação a uma base prestes a ruir.

O Sopão das Manas, é uma destas “bases de sustentação”. O projeto, iniciado em maio de 2020 de forma autônoma por um grupo de cozinheiras e produtoras da área cultural e da área gastronômica, conta hoje com pelo menos 50 voluntárias e já atendeu mais de 10 mil pessoas.

 

O projeto Mãos de Maria em Paraisópolis capacita mulheres na produção de alimentos desde 2017. Durante a pandemia teve um papel fundamental na segurança alimentar da comunidade, produzindo mais de 600 mil refeições para distribuição gratuita.


“Apesar do nosso trabalho se concentrar quase que exclusivamente em comunidades, é perceptível como o número de pessoas morando nas ruas aumentou nos últimos meses. Nas comunidades, é bastante claro que a questão da fome não é de hoje”, conta Katia Lyra, cozinheira no espaço Casa Cuca e uma das fundadoras do projeto.

“Ouvi de muitas mães de família que, graças àquele alimento doado por nós, aquele seria um dia a menos que ela precisaria sair para a rua para trabalhar e garantir a próxima refeição”, diz.

Katia acredita que a pandemia e os movimentos voluntários nas ruas e comunidades criaram uma espécie de “ponte entre realidades”, e que a questão da fome é central, porém longe de ser única. “O alimento é uma forma de acessar outras questões e lacunas sociais. Assim conseguimos conectar pontos, como acessar as lideranças – em grande parte mulheres – através do alimento. Há questões muito mais profundas e diretamente conectadas entre a fome e a miséria”, finaliza.

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As fotografias desta reportagem foram financiadas pelo Fundo Emergencial para Jornalistas Cobrindo Covid-19 da National Geographic Society. Alguns nomes foram alterados a pedido dos retratados.

 

Marimar veio de de Florianópolis para capital paulista três meses antes da Pandemia e não conseguiu voltar pra sua casa devido aos bloqueios das viagens interestaduais. Ela se tornou então mais uma na fila da fome no Largo São Francisco. “Ficamos dois dias indo dormir chorando de fome. Na rua não tem como se proteger.”