O aguardado e tardio lançamento da mais recente obra de Hayao Miyazaki se revela uma autobiografia ficcional brilhante, que chega de mansinho na corrida do Oscar 2024, porém finaliza com uma queimação extraordinária sobre o legado de nossas vidas

Divulgação/Studio Ghibli

Por Hyader Epaminondas

O que dizer de um filme do Studio Ghibli que não seja um mar intenso de elogios em cima de elogios? Hayao Miyazaki, o mestre perfeccionista por trás de algumas das obras mais emblemáticas da animação global, retorna de sua aposentadoria para nos encantar com sua última criação e talvez, sua obra prima.

Em um filme que transcende as barreiras do entretenimento para mergulhar profundamente na alma criativa de seu criador, ” O Menino e a Garça ” é sem sombra de dúvidas uma obra poderosa que não apenas narra uma história cativante e imersiva em diversas camadas, mas também serve como uma poderosa alegoria do processo de aposentadoria do lendário autor do Studio Ghibli.

Em momentos iniciais do filme, somos imediatamente transportados para um universo imaginário e encantador, onde a fronteira entre a fantasia e a realidade se dissolve de forma excepcional. Essa transição abrupta nos leva a um mundo onde os eventos da Segunda Guerra Mundial se fazem presentes de maneira marcante e impactante. O cenário é construído para retratar os efeitos devastadores dos bombardeios e o pânico que permeia a época, proporcionando uma imersão profunda na atmosfera histórica e emocional do período.

Miyazaki, como de costume, nos apresenta com uma paleta visual deslumbrante e personagens profundamente cativantes, ao mesmo tempo em que desenvolve sua narrativa de maneira enigmática, com um ritmo cadenciado que permite a absorção gradual dos elementos em cena, criando assim uma familiaridade encantadora com esse mundo.

Cada pequeno detalhe carrega consigo uma camada de simbolismo que ressoa com as questões mais profundas da existência humana e da própria vida, sempre trabalhando peneirando pequenas referências com essa dualidade durante todo o percurso da animação. É na trama principal que Miyazaki revela sua genialidade singular ao colocar de forma poética fragmentos de sua vida nos conflitos do filme como uma sessão de terapia imersa em simbolismo.

A história acompanha um jovem garoto, representado de maneira tímida assombrado pelo luto após perder sua mãe em sua jornada de despedida e de aceitação. Confrontado com a inevitabilidade do tempo e o desafio de deixar seu legado em mãos capazes, o diretor embarca em uma jornada emocionante e introspectiva junto de seus personagens que ecoam os próprios sentimentos do criador por trás da tela.

O CONTEXTO É O ELEMENTO CHAVE

É Através de metáforas entrelaçadas como num mosaico repleto de citações de seus trabalhos anteriores, somos convidados a refletir sobre a natureza efêmera da vida e da criatividade, sobre o medo da obsolescência e a esperança de um legado duradouro, não apenas celebrando seu próprio legado, mas também inspira aqueles que o seguirão. É uma mensagem de esperança e renovação, uma lembrança de que, embora os tempos mudem e os artistas se retirem, a magia da imaginação nunca morre.

Apesar da necessidade de um amplo contexto sobre a história do diretor para uma compreensão completa da mensagem que a animação busca transmitir, este filme se destaca por seus próprios méritos. As metáforas e alegorias dos personagens, extremamente bem desenvolvidos e animados, são elementos que sustentam o coração da obra. Em certos momentos, a fluidez da animação é tão impressionante que parece ser uma homenagem à qualidade insuperável do Studio Ghibli.

Os personagens são construídos e aprimorados de maneira multifacetada ao longo da narrativa, permitindo diversas interpretações. Assim como suas histórias são contadas através de suas ações e diálogos, seus significados podem ser analisados de forma flexível, seja considerando o contexto da vida do próprio Miyazaki ou examinando significados mais amplos.

Por exemplo, os periquitos presentes na obra podem ser interpretados de várias maneiras: como representantes da equipe do diretor, carregando o desejo inato de preservar e continuar o legado do Studio Ghibli, ou simplesmente como uma alegoria que remete ao regime nazista ou qualquer outro regime facista de controle do individualismo. É nessa pluralidade de interpretações que a animação ganha uma vida eterna, pois vai continuar a ser discutida, analisada e apreciada por diferentes perspectivas ao longo do tempo.

Apesar da tradução como “O Menino e a Garça”, sua história está intimamente ligada ao título original, “Como vivemos?”, demandando uma imersão profunda nas emoções que transbordam da tela, absorvendo cada detalhe, por mais sutil que possa parecer, para montar o quebra-cabeça na cor azul característico da Ghibli. Isso inclui a belíssima música de encerramento, enquanto os créditos sobem em um tom melancólico de despedida.

Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Especial Oscar 2024