Publicada em 1914, a obra ‘O Menino da Gouveia’ foi relançada pela editora O Sexo da Palavra. Confira entrevista com Antonio Kvalo, um dos responsáveis pelo projeto

Foto: Divulgação

Por Kaio Phelipe

Criada a partir de um grupo de pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia sobre cenas sexuais homoeróticas na literatura e prosa brasileira a partir do século 19, a ideia inicial da editora foi reeditar textos de cunho homoerótico que sofreram apagamentos. Um exemplo é a obra ‘O Menino do Gouveia’, lançada pelo pseudônimo Capadócio Maluco, considerado ainda o primeiro conto pornográfico e homossexual publicado no Brasil, em 1914, e relançado pela O Sexo da Palavra, em 2017.

“Temos como propósito utilizar o trabalho gráfico como ferramenta para que esses textos não sofram novos apagamentos. Buscamos um design moderno e inovador para que as pessoas sintam vontade de ter e ler o livro”, explica Antonio Kvalo, que também é designer.

Não há resposta efetiva que justifique o apagamento de determinadas obras. O conto ‘O Menino do Gouveia’, por exemplo, vendeu muito bem na época e, apesar de não haver dados exatos sobre quantidade, já que a revista que produziu o conto não fez esse registro, foram encontradas informações que indicam o sucesso da narrativa.

São homens brancos e heterossexuais

Quando notamos que os responsáveis pelo apagamento de nossas existências, desde os tempos primeiros, são homens brancos e heterossexuais, que são exatamente essas as características de quem se interessa e faz questão de manter o que é o cânone da literatura e quem desde sempre se considerou sujeito do discurso, podemos apontar mais um motivo para mulheres, pessoas negras e/ou dissidentes da heterossexualidade serem excluídas deste catálogo e, consequentemente, terem a memória negada.

Capa do livro “O Menino do Gouveia”, editora Sexo da Palavra

Outros motivos ainda podem ser atribuídos. “A literatura que produz erotismo, pornografia, obscenidades é um tipo de literatura que foi apagada em todo o mundo. Até hoje, falar sobre sexo é considerado um tabu e a pornografia ainda é vista de forma menor na literatura. Se a gente pensar na virada do século 18 para o século 19, que é quando tivemos uma produção muito grande de pornografia e quando a literatura era uma das poucas mídias que podia carregar a questão do sexo, diferente de hoje, do mundo que tem fácil acesso a tudo, é o mesmo período em que a sociedade está se higienizando com a Ciência. É quando se inventa o termo heterossexual, o termo homossexual, é quando começa a falar cientificamente sobre o corpo, o corpo humano que tem células, órgãos, se fala sobre o orgasmo e apaga o corpo que é sexual, que sente tesão”, elucida Antonio.

“Foi criada a ideia de que quanto mais científico, mais correto nós estamos e quando falamos de pornografia não necessariamente estamos falando de Ciência. Só no século 19, com a evolução da psicanálise, a gente vai ver uma mudança e começar a falar sobre isso”, complementa.

A editora O Sexo da Palavra está completando seis anos e possui 48 títulos publicados. Além das reedições, atraíram e publicaram novos autores de prosa e poesia, pesquisas e livros técnicos ampliando o acervo sobre os assuntos que propõem.

Hoje podemos encontrar selos e editoras que trabalham questões referentes ao gênero e sexualidade e temos um grande número de autores e autoras que conseguem descrever o corpo sendo um corpo LGBTQIAP+. Mas essa é uma conquista recente. Conseguimos entender o que é uma narrativa lésbica ou trans, por exemplo, dos anos 80 para cá.

Capadócio Maluco

“Nós só conseguimos saber se existe diferença nas narrativas quando entendemos que esses corpos e essas diferenças existem. A questão da sexualidade não é determinante de mudança de um tempo para outro, a diferença é o que esse corpo sexual produz em seu tempo. Usando mais uma vez ‘O Menino do Gouveia’ como exemplo, não se falava que era uma narrativa gay. A autoria não se sabe se é homem, mulher ou mais de uma pessoa. O narrador é o pseudônimo Capadócio Maluco. O livro carrega a sociedade presente naquele período em que é escrito. Quando a gente lê ‘O Menino do Gouveia’, a gente lê com os olhos de hoje e marca o livro desta forma e entende que é uma narrativa gay sem sombra de dúvida. Mas naquela época era tratado de outra forma. Essa é uma narrativa que chama bastante atenção porque o personagem faz isso por prazer, ele não é abusado, não é inferiorizado, não é violentado”, pontua Klavo.

“Em outras narrativas importantes, como ‘O Bom Crioulo’, de Adolfo Caminha, o homossexual é colocado em um lugar inferior, é abusado ou vai morrer ou sofrer alguma outra tragédia. Isso é como dizer que ser gay vai te trazer consequências ruins. Em ‘O Menino do Gouveia’, o personagem central usa o prazer dele, tem poder sobre o próprio corpo, diz o que busca em outros homens. Hoje a gente consegue identificar no século 19 autoras que seriam entendidas como travestis, mas só temos isso corroborado quando a gente tem consciência que esses corpos existem na sociedade. Quando a gente tem uma autora como Amara Moira no nosso catálogo, que é uma travesti, doutora em Literatura pela UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), que produz uma narrativa onde faz questão de dizer que é travesti e comercializa essa literatura, ela também está dizendo que existe”.

“Foi diferente com Anderson Herzer, autor de ‘A Queda Para o Alto’. A sociedade não entendia que o corpo dele existia. Na virada do século 19 para o século 20, a produção do João do Rio é inteiramente marcada por um corpo homossexual, só que naquela época não existia um aparato homossexual para o corpo dele existir como um corpo gay na coletividade”, finaliza.

Livros como ‘O Menino do Gouveia’ e todo o catálogo da editora O Sexo da Palavra podem ser encontrados aqui.