Acompanhamos a equipe do Curral das Éguas, finalista da Taça das Favelas, da concentração à festa pelo título

Foto: Ludmila Silva/CUFA

Por Gabriella Lima/ Copa FemiNINJA

– Oi, Gabriella! Olha, eu não vou conseguir falar com você agora porque eu tô aqui na Globo, vou participar do programa da Fátima Bernardes. Quando eu chegar em casa te mando uma mensagem.

Foi assim que a Monique, técnica da equipe do Curral das Éguas, respondeu ao meu primeiro contato na sexta-feira, véspera da final da Taça das Favelas. Eu, voluntária de comunicação da CUFA para o evento, estava tentando combinar com ela a que horas encontraria o time na manhã seguinte para ir com elas no ônibus rumo ao estádio de Moça Bonita, onde seriam disputadas as finais. Naquela sexta, eu perdi para a Fátima Bernardes. Mas no sábado eu não teria concorrência: fui a única a acompanhar o time em todos os momentos, desde a concentração na casa da treinadora, em Realengo, passando pelo caminho do ônibus até o estádio, pelo vestiário antes da partida, até a volta triunfal para a comunidade, desfilando em um caminhão aberto do Corpo de Bombeiros com o troféu. Essa última parte, aliás, foi particularmente emocionante pra mim – afinal, quantas pessoas que desfilaram em um caminhão dos Bombeiros você conhece?

A concentração

Não foi difícil encontrar a casa da Monique: ao chegar no local combinado, o som das vozes animadas logo de cara me indicou o lado para onde eu deveria ir. Ela me encontrou no portão e me levou ao quintal, onde algumas jogadoras já estavam reunidas. Ao chegar, me apresentei e avisei que ficaria ao lado delas até o fim do dia, registrando os momentos do time para as redes sociais da CUFA e da Taça. Eu cheguei a pensar que a minha presença ali, filmando e fotografando o tempo inteiro com o celular, poderia deixá-las acanhadas. Não poderia estar mais enganada: aparentemente, a rotina de gravações e entrevistas para programas de televisão na semana anterior já havia sido o suficiente para deixá-las à vontade diante das câmeras. Enquanto eu filmava, as jogadoras tomavam café da manhã, riam, brincavam umas com as outras e esperavam o time ficar completo, o que foi acontecendo pouco a pouco, conforme as demais chegavam de bicicleta, à pé ou de carro.

Foto: Gabriella Lima/CUFA

Dentre as que já estavam lá quando eu cheguei, uma das mais animadas era Adriana. Artilheira da competição com 7 gols até aquele momento, ela encantou a todos que a viram jogar ao longo do torneio com sua eficiência dentro de campo. Foi graças a isso que ganhou o apelido de “Imperatriz”, em referência a Adriano Imperador, o mítico atacante carioca que hoje, longe dos gramados, curte a vida e o dinheiro que o futebol lhe rendeu oscilando entre a vida de luxo da Barra da Tijuca e a simplicidade da Vila Cruzeiro, sua comunidade de origem na Zona Norte da cidade. Assim como Adriano, a Imperatriz também teve seus momentos de glória no futebol, embora em proporções mais modestas: durante a adolescência, Adriana jogou nas categorias de base do Vasco da Gama, e no início dos anos 2000 chegou a ser convocada para a seleção brasileira sub-17, quando atuou ao lado de nomes como Marta e Cristiane. Mas no caso dela, a pausa na carreira não foi uma opção, e sim uma consequência da falta de investimento na categoria – situação infelizmente muito recorrente no futebol feminino ainda hoje.

Foto: Ludmila Silva/CUFA

Mas as dificuldades que a impediram de seguir carreira no futebol profissional não foram maiores que o amor pelo esporte. Afinal, por qual outro motivo aquelas mulheres teriam resolvido se juntar para formar um time e disputar campeonatos amadores? Para muitas, a chance de ter seu talento descoberto por um olheiro, como não raro acontece na modalidade masculina na Taça das Favelas, esbarra na idade: enquanto os times masculinos estabeleceu-se em 18 anos a idade máxima para participar do torneio, no feminino não há limite de idade. A própria Adriana, por exemplo, tem hoje 36 anos e não é a única do time a passar dos trinta.

Foi a paixão pelo futebol, somada ao desejo de representar sua comunidade, que levou o time a superar as inúmeras adversidades e chegar até aquele momento. Alguns dos obstáculos vencidos a cada dia foram lembrados pela Monique em uma conversa com as jogadoras, minutos antes do ônibus chegar:

– (…) era dinheiro de passagem que às vezes não tinha, a Danúbia que bota oito pessoas no carro dela pra trazer pro treino (…), a gente às vezes fica até dez, onze horas na Praça da Capelinha porque a galera acaba chegando mais tarde, vem direto do colégio, do trabalho.

Mas tudo isso, ao menos naquele momento, havia ficado para trás. A fala da treinadora, na verdade, foi o único momento de caráter mais sério e formal durante a manhã. O restante do tempo antes de seguirem para o estádio foi preenchido por selfies, uma roda de altinho e um pagode comandada pelas próprias jogadoras, com Adriana no tantã, Su no pandeiro e Tati no repique de mão. Suzana, Ester e Daniele arriscavam alguns passos e tentavam animar as colegas a acompanharem, mas a maioria preferia marcar nas palmas mesmo.

Pode não parecer, mas, apesar da descontração, todas as atenções estavam voltadas para o jogo mais tarde contra o time do Corte 8. As meninas do Curral sabiam que não seria uma partida fácil, afinal, a equipe de Duque de Caxias é bicampeã da Taça das Favelas e iria disputar sua quinta final consecutiva do torneio. Mas a julgar pela determinação das atletas e pela excelente campanha feita ao longo do campeonato, o Curral não estava disposto a facilitar em nada a vida das jogadoras da Baixada.

Rumo a Moça Bonita

Depois de alguns minutos – bem mais do que o previsto -, o ônibus que iria levá-las ao estádio chegou ao local. E no momento de embarcar, as meninas repetiram uma cena já conhecida por nós: com os instrumentos de pagode na mão, subiram em fila no ônibus ao som de “Jogadeira”, música-tema do Brasil na última Copa do Mundo de futebol feminino.

Não foi a única referência à seleção brasileira: no caminho do ônibus até Moça Bonita, alguém puxou um “fora Vadão, Monique é seleção” e foi imediatamente acompanhada pelas demais. Tá certo que o Vadão àquela altura já não era mais o técnico da seleção, mas isso não invalida o pedido e torna ainda mais sincera a música seguinte, uma rima terminada em “é a melhor treinadora do Brasil: Monique!”.

– [A relação com as jogadoras] é a melhor possível. Dentro e fora de campo elas me chamam de tia Nique. Então a relação é a melhor possível, de amizade, companheirismo, mas quando eu tenho que ser a técnica, eu sou a técnica. E eu fico muito feliz, porque a recíproca é verdadeira. –

Monique, sobre os elogios cantados pelas atletas.

Foto: Gabriela Caffarena/CUFA

A distância entre o ponto de encontro do time e o Moça Bonita é bem curta, pouco mais de 20 minutos de carro. E por morar bem próximo ao estádio, o caminho já é velho conhecido meu. No entanto, em meio a tantas músicas, mais pagode e muitos gritos de guerra, tive a impressão de que o ônibus levou bem mais tempo do que eu imaginava para chegar ao campo. A princípio achei que tinha sido só impressão minha mesmo, talvez pela animação do time, que não parava de cantar “Curral é minha vida, Curral é minha história, Curral é meu amor”. Mas depois percebi que eu estava certa, realmente o caminho tinha sido mais longo que o normal, e logo entendi o motivo: as ruas no entorno estavam quase todas bloqueadas, tomadas por dezenas de ônibus de torcedores das equipes finalistas daquele sábado. Era dia de casa cheia.

Vestiário

Logo que chegamos ao estádio, o time foi para o vestiário, onde trocaram de roupa e lancharam. Quando já estavam prontas, receberam uma ilustre visita: Celso Athayde, um dos fundadores da CUFA e organizador da Taça, foi até lá para parabenizá-las pela final e desejar boa sorte no jogo. Foi a deixa que Monique precisava para reunir o time novamente, dessa vez para a tradicional preleção e oração antes de entrar em campo.

Mais uma vez, ela relembrou a trajetória do time até ali, e reforçou a importância do jogo coletivo. Mas dessa vez, algumas jogadoras pediram a palavra: Tati lembrou a todas da enorme torcida que estava ali para apoiá-las; Yasmin fez questão de reafirmar a confiança que tinha em cada uma das colegas e principalmente na goleira Diana, decisiva em jogos anteriores; e Luana finalizou falando da importância de assumir responsabilidades e se doar ao máximo em campo. Em seguida, com o tempo já apertado, rezaram um pai-nosso, e Monique fez a entrega da faixa de capitã para Adriana, que foi aplaudida pelas demais.

Saímos do vestiário, passamos pelo túnel e chegamos ao campo.

O jogo

Após a cerimônia de execução do hino e uma breve fala de alguns apoiadores, ao meio-dia a bola finalmente rolou. Mas por pouco tempo: antes dos cinco minutos, a partida precisou ser interrompida. O motivo? Um cachorro resolveu fazer parte da festa e invadiu o campo, dando trabalho para quem tentou contê-lo. Após algumas estripulias, o doguinho encerrou sua exibição e foi retirado com segurança dos gramados, e só então o jogo pôde recomeçar.

E coube à Imperatriz abrir o placar. Após cobrança de falta, Adriana recebeu a bola colocada na área e cabeceou para o gol, se antecipando à goleira Marcela e marcando seu oitavo gol no torneio. A artilheira comemorou com a sua tradicional dancinha da “Eguinha Pocotó” – feita por ela em todas as comemorações desde o início da Taça, como uma maneira de evitar zoações de adversárias com o nome da sua favela.

Na segunda etapa, o time do Corte 8 até ameaçou reagir e tentou se impor mais no jogo, mas a estratégia acabou deixando o time exposto. Em uma falha da zaga da equipe da Baixada, Yasmin dominou a bola sem dificuldades e tocou para Adriana, que recebeu na entrada da área e deu lindo passe para Daniele marcar o dela, selando a vitória e o título do Curral das Éguas.

Festa na favela

O que era um sonho até aquela manhã de sábado se tornou realidade: o Curral das Éguas era campeão da Taça das Favelas, título até então inédito para a favela da Zona Oeste. Entre muitos sorrisos, agradecimentos e lágrimas, as meninas comemoraram na beira do campo, mas logo subiram para as arquibancadas para aguardar a definição do confronto entre Gogó da Ema e Patativas, pois só após a final masculina seria feita a premiação.

Enquanto a hora não chegava, elas curtiam o sabor da vitória da melhor forma: tiravam fotos, davam entrevistas e recebiam os parabéns das pessoas ao redor. Quando enfim a final masculina foi encerrada, com o Gogó derrotando o Patativas nos pênaltis, puderam descer novamente para o gramado, dessa vez para receber as medalhas e o tão esperado troféu – que em 2019 passou a se chamar troféu Ari Pipa, em homenagem a um dos maiores incentivadores da Taça das Favelas, falecido ano passado.

E o Curral não subiu ao pódio apenas uma vez! Além do campeonato, o time de Realengo também faturou prêmios individuais: Yasmin foi eleita a melhor jogadora do torneio, Adriana foi premiada pela artilharia, e Monique recebeu o título de melhor treinadora da modalidade feminina.

Voltar para casa levando tantos troféus era tarefa fácil, pior seria voltar sem eles. Agora, imagine retornar à favela transportando tudo isso em cima de um caminhão do Corpo de Bombeiros, com todo o time cantando e comemorando enquanto era aplaudido por motoristas e pedestres durante todo o trajeto? Fácil também. Naquele dia, não tinha tempo ruim (nem bar fechado) no Curral. E assim como o caminho da ida foi mais demorado do que de costume, a volta também teve seu trajeto alterado, dessa vez propositalmente, para percorrer mais ruas e permitir que as campeãs fossem aclamadas pelo maior número possível de pessoas. Funcionou: por onde passavam eram ovacionadas com aplausos e buzinas, e respondiam com gritos e acenos ao mesmo tempo que cantavam, filmavam e tentavam equilibrar a si mesmas e aos prêmios.

Foto: Gabriella Lima/CUFA

Foi nesse clima, ao som de gritos de “É campeão” e “Respeita o Curral”, que o time foi recebido já quase ao anoitecer na Praça da Capelinha, a mesma onde tantas vezes treinaram até tarde da noite. Elas desceram do caminhão, eu desci junto, fizemos mais alguns registros para a CUFA e eu finalmente me despedi. A partir dali, a festa seria só delas e da sua comunidade. Enquanto pegava o caminho pra casa – o mesmo do estádio -, além do cansaço, eu sentia também uma grande alegria pelas histórias que havia conhecido e pela oportunidade de poder contá-las. Ano que vem a Taça das Favelas está de volta e eu espero ser tão pé quente quanto fui esse ano, e quem sabe dar outro rolé no caminhão dos Bombeiros.