Há cerca de 100 anos, jogadores brasileiros negros ficaram de fora de um torneio disputado na Argentina

Elenco da seleção brasileira sem negros em torneio de 1921 na Argentina

Por Rafael Lucas

Acredito que muita gente quando observa as seleções brasileiras, tanto a atual como as das décadas passadas, nem imagina que em algum momento ela não teve a presença dos jogadores negros. Mas, muito provavelmente, quando refletimos sobre o profundo racismo no Brasil, começamos a considerar a possibilidade de que nem a composição da seleção tenha conseguido passar ilesa pela discriminação racial.

E sim, o país do futebol, que chegou a esse status pela habilidade de centenas de craques negros, já impediu a convocação de atletas afro-brasileiros. Esse triste capítulo do futebol e da nossa sociedade – mais um, né? – ocorreu há cerca de 100 anos, entre 1920 e 1922.

Tudo começou quando o Brasil foi à Argentina realizar um amistoso contra a seleção local no ano de 1920. Na véspera dessa partida, o jornal argentino “La Crítica” publicou uma charge racista mostrando um grupo de macacos com a camisa canarinho sob o título: “Macacos em Buenos Aires”. A publicação trazia uma série de ofensas racistas assinada pelo jornalista Antonio Palacio Zino.

Charge publicada pelo jornal argentino La Crítica – Domínio Público

O caso gerou uma grande revolta entre os jogadores brasileiros. Eles chegaram a ir até à sede do jornal para protestar contra a publicação e alguns se recusaram a entrar em campo. Diante de toda essa confusão e desfalques, a seleção perdeu por 3 a 1 para a Argentina. Há quem diga que ali começou toda essa essa rivalidade histórica entre as seleções.

Mas, como se não fosse suficiente esse episódio deplorável, no ano seguinte, o então Presidente do Brasil Epitácio Pessoa, determinou a não convocação de jogadores negros para um torneio que daria origem à Copa América e que aconteceria justamente na Argentina.

Segundo matéria do observatório3setor.org,br, jornais da época noticiaram que a Confederação Brasileira de Desporto (CBD) desejava evitar “animosidades” com os argentinos e discutiu o não envio dos jogadores negros ao torneio. O caso chegou a ser levado ao então presidente da República, que decidiu excluir da seleção os atletas de pele escura. A justificativa era “preservar a reputação” do país no exterior.

Essa decisão não chegou a ser oficializada por documentos escritos. O presidente Epitácio negou que tenha cometido interferência sobre o caso. Entretanto, o que se viu na convocação da seleção para o torneio na argentina, em 1921, foi a completa ausência de atletas negros. Inclusive, a falta do artilheiro Arthur Friedenreich, jogador negro e de maior destaque da seleção na época. Ao longo da carreira marcou 595 gols em 605 jogos, média de gols por partida maior que a do Pelé.

Arthur Friedenreich, o artilheiro do Brasil no início do século XX

Em 1922, em torneio Sul-Americano sediado no Brasil, a CBD voltou a convocar atletas negros. O resultado naquele ano já foi completamente diferente do torneio anterior. Com a volta dos jogadores afro-brasileiros e a melhora da qualidade técnica da equipe, o Brasil sagrou-se bicampeão.

Na Copa do Mundo, o maior torneio de futebol do planeta, só há pouco tempo os jogadores de pele escura passaram a ser predominantes no Brasil. Mesmo os afro-brasileiros quase sempre sendo protagonistas das conquistas da seleção, só a partir de 1994 se tornaram maioria nas convocações para a Copa. Ao todo, são oito Copas seguidas com maior presença de atletas negros. O Mundial no Qatar é a 22° edição, tendo o Brasil como a única equipe que participou de todas elas.

Parece inimaginável para nossa geração que o futebol, mais recentemente protagonizado pelas mulheres negras também, possua uma história de racismo tão explícita e profunda. Por isso, é importante que em eventos como a Copa do Mundo, que mobiliza milhões de brasileiras e brasileiros, a gente possa suscitar e refletir ainda mais sobre casos de determinações políticas discriminatórias que também interferem no futebol. Afinal de contas, nenhum acontecimento histórico ou eventos esportivos estão separados da organização política social.

O racismo é cruel, desumaniza, violenta milhares de pessoas negras e, consequentemente, também as impede de acessar diversos espaços da sociedade, como vimos neste caso da seleção em torneio disputado na Argentina. Agora reflitam: de quantos outros locais indivíduos negros, ainda que sejam altamente qualificados e capazes, não já foram e continuam sendo proíbidos de acessar por conta do seu fenótipo e cor da pele?