Como a história do cinema teve que se aprimorar para criar efeitos sonoros que chegassem mais próximos do mundo real

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Por Aline Gomes

Certamente, para quem foi assistir Zona de Interesse em uma sala de cinema, terá a sensação de que um dos elementos cruciais que compõe o horror nazista são os efeitos sonoros. O início da trama coloca o espectador sob uma mistura de ruídos acompanhada por uma melodia de aspecto fúnebre, onde se exibe apenas uma escuridão, sem qualquer imagem por quase 4 minutos. Esse prólogo é um pouco do que será operado durante todo o filme, mesmo se tratando de uma história sobre o Holocausto, nunca veremos um campo de concentração nazista, mas estaremos o tempo todo imerso nele.  

Em uma entrevista, Johnnie Burn, o designer de som do filme, relata que sua principal fonte de criação foram os documentos de arquivos e museus com depoimentos sobre o nazismo. Nessa pesquisa, Burn se concentrou em detalhes onde sobreviventes descreviam elementos relacionados aos sons dos campos de extermínio. O resultado é percebido em todo filme. Os barulhos de tiros constantes são uma referência direta às execuções de judeus, 80 pessoas por dia eram assassinadas por armas de fogo. No entanto, Burn confessa que deixou de fora outros eventos que encontrou nos depoimentos, como a descrição do horrível som de pessoas que se jogavam em cercas elétricas em atos de suicídio. 

Zona de Interesse apresenta um jogo habilmente articulado sobrepondo cenas banais, bucólicas e domésticas com sons de trens, gritos, tiros, estrondos da fornalhas, e homens do regime nazista gritando. Em algumas cenas ouvimos uma orquestra, um desses momentos se passa num dia ensolarado, quando o patriarca da família alemã observa as crianças brincando na piscina. Muitos campos de concentração possuíam um conjunto de músicos, prisioneiros que eram obrigados a tocar dependendo do interesse das administrações do campo de concentração. Essas orquestras eram usadas, ora para fornecer o ritmo das colunas de prisioneiros em marcha ao saírem ou ao retornarem aos campos, ora para figurar como música de fundo para punições e execuções, ou até para feriados nazistas, como no aniversário de Hitler

Todo esse contraste extremamente angustiante é resultado do jogo entre som e imagem, o que provavelmente tenha sido um dos motivos por Zona de Interesse ter sido indicada na categoria de melhor som no Oscar de 2024. No entanto, quando nos deparamos com a tecnologia atual que facilitou e proporcionou a criação de uma produção sonora tão sofisticada, pois além das inúmeras câmeras espalhadas pela locação, também haviam captadores de sons por todos os cantos do set de filmagem, nem imaginamos a dificuldade que os cineastas anteriores enfrentavam para realizar um filme com som e imagem minimamente convincentes.

Sem dúvida, é injusto afirmar que cenas do cinema mudo, não deixavam de ter impacto. Não ouvimos o som das rodas do carrinho de bebê descendo os degraus de Odessa em O Encouraçado Potemkin (1925), nem o trânsito de carros distante enquanto Harold Lloyd sobe em seu prédio em O Homem Mosca (1923) ou o barulho da água que rebate no barco à deriva com três náufragos em o Limite (1931) de Mário Peixoto. Mesmo assim, essas cenas fazem parte da nossa memória e possuem uma energia ou uma ternura tão poderosas, que mesmo que não representem as coisas como são no mundo real, impressionam e emocionam.  

O primeiro filme com sincronia entre a imagem e o diálogo dos atores foi Cantor de Jazz (1927), que foi indicado na premiação do Oscar em 1929 na categoria melhor engenharia de efeitos sonoros. No início, muitos desses filmes precisavam ser exageradamente teatrais, em parte porque o equipamento ainda não era adequado para realizar tomadas elaboradas entre o enquadramento e a captação de som. Era comum que o público escutasse cenas contaminadas pelo som ambiente dos locais de gravação, conversas animadas, pessoas cantando, portas batendo e cachorros latindo. Tal problema  foi resolvido com o surgimento dos estúdios, ambientes fechados onde os diretores passaram a ter mais controle para gravar as vozes do elenco. 

Foi somente em 1932, nos EUA, e mais tarde em outros países, que foram introduzidos microfones capazes de gravar detalhes em vez de captar todos os sons do ambiente. Muitos dos avanços na captação sonora para o cinema foram realizados pelo diretor russo Rouben Mamoulian (1897-1987), que chegou ao Ocidente como aluno do grande guru da atuação, Stanislavski. Contratado pela Paramount, com base em suas inventivas produções teatrais, foi no filme Aplausos (1929) que Mamoulian conseguiu captar sons simultâneos em uma única cena, usando dois microfones, um para cada atriz, com fios separados e que depois foram combinados no processo de edição. A partir desse momento, novos esquemas foram possíveis e os diretores agora tinham que decidir se queriam que o público ouvisse uma coisa ou mais e se outros sons seriam derivados da ação dentro da cena ou de outro lugar. A ideia de ruído de fundo, paisagem sonora, sons ameaçadores ou de alerta, nasceu neste avanço. 

Os cineastas descobriram que o som poderia tornar seus filmes mais íntimos, permitindo que os personagens expressassem seus pensamentos. De repente, a imagem não era primária. O som passou a ser usado como um importante elemento para compor as cenas e promover um apelo mais emocional. Talvez seja por isso que Alfred Hitchcock ficou tão determinado em recriar o efeito sonoro mais fiel possível ao de uma faca perfurando a carne humana. Em Psicose (1960), a equipe de som, que não era pequena, buscou este efeito a partir do ruído de um melão perfurado por uma faca. Para tal tarefa, foram testados mais de duas dúzias de tipos de melões diferentes, até encontrarem um que Hitchcock aceitasse ser o mais próximo do som de um açougueiro perfurando uma carne. Mesmo assim, o diretor ainda não estava satisfeito, e o que ouvimos na icônica cena da história do cinema, a cena do assassinato no chuveiro, é uma combinação magistral de sons do melão e de carne sendo perfurados. 

Talvez tenha sido essa busca por um realismo hitchcockiano, que tenha levado Jonathan Glazer, diretor de Zona de Interesse, a filmar em uma casa real e não em um cenário que emulasse uma residência. Certamente, os ruídos capturados de uma casa com paredes e portas falsas forneceriam uma ambientação mais distantes do mundo real. De alguma forma essa maestria e fascínio pela captura dos sons possam ser comparadas a um filme de 50 anos atrás. Em A conversação (1974), Francis Ford Coppola apresenta um personagem que lida com aparelhos de escuta e consegue gravar conversas em qualquer ambiente. Comissionado para um trabalho de investigação, o personagem passa a ficar obcecado pelos diálogos de um casal, o que leva ao seu eventual colapso. Poucas vezes o cinema conseguiu transformar tão bem o efeito do som como um tema filosófico em si. Filmes como do Coppola e de Glazer penetram na realidade através do ouvido, através dos sons de uma conversa e dos ruídos das ações humanas. Contudo, Jonathan Glazer, por meio de uma orquestração auditiva e visual, soube revelar este horrível e aterrorizante mundo que produziu histórias que jamais podem ser silenciadas.

Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Especial Oscar 2024