Uma análise (com spoilers) do longa norueguês

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Por Beatriz Almeida

Com exibição do filme “A pior pessoa do mundo”, de Joachim Trier (2021), o MIS – Museu da Imagem e do Som em São Paulo promoveu um ciclo sobre cinema e psicanálise. O longa-metragem teve duas indicações ao Oscar e conquistou o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes para Renate Reinsve.

A sessão contou também com um bate-papo e análise psicanalítica do filme, dos personagens centrais do longa e de como o desenrolar da trama nos desperta para inúmeras provocações sob o ponto de vista psicanalítico.

A conversa contou com a presença de Tati Bernardi, escritora, colunista na Folha de São Paulo e podcaster, da psicanalista  Marielle Kellermann, e foi mediado pela também psicanalista Luciana Saddi.

Análise

O longa norueguês “A pior pessoa do mundo” narra a história de Julie, uma jovem adulta, prestes a completar 30 anos, cujo momento da vida consiste em explorar todas as possibilidades que surgem.

O filme é marcado por prólogo, epílogo e doze capítulos, que dá a quem o assiste uma sensação de demora, o que aparenta ser proposital, visto que, ao avançar de cada capítulo, o tempo é marcado de forma muito expressiva.

Julie inicia sua história na faculdade de medicina, mas logo percebe que não era bem isso que ela queria. Ela ingressa, então, na faculdade de psicologia, também por um período curto, até que decide que o que realmente gostaria de fazer é fotografia.

Essas possibilidades de mudanças, de escolhas, me causou um determinado incômodo e até mesmo certa inveja, de como todo o ambiente em que Julie está inserida facilita suas mudanças e escolhas constantemente. É quase o retrato perfeito de “o ambiente suficientemente bom” descrito pelo psicanalista inglês, Winnicott.

Logo quando inicia seu trabalho como fotógrafa, Julie conhece Aksel, um cartunista mais velho com quem se envolve.

Talvez devido a sua experiência de vida, Aksel percebe e diz a Julie que um dos dois acabariam machucados caso insistisse na relação. Ambos estavam em momentos distintos e ele diz que Julie tinha que ser livre para escolher, e ela opta por ficar e eles embarcam em uma relação. Rapidamente vão morar juntos em uma relação repleta de nuances: Aksel já possui uma carreira pré definida, é um intelectual com quem Julie pode conversar e ter trocas sobre absolutamente tudo, mas também traz consigo uma certa arrogância.

A viagem

Durante esse relacionamento, Julie e Aksel fazem uma viagem com os amigos de Aksel. A viagem é um dos pontos de passagem do tempo e das angústias que assombram aquela relação: Aksel quer ter filhos e Julie não se sente pronta.

Aksel a provoca questionando-a sobre o que falta para que eles possam dar esse passo, e Julie não tem a resposta. Essa é uma característica muito importante de sua personalidade, para muitas perguntas ela não tem a resposta.

E quando o filme traz à tona essa discussão entre o casal sobre filhos e dar um passo a mais na relação, o ambiente todo corrobora com a formação dos incômodos em quem o assiste: mostra a dificuldade da mãe com a sua criança, casais brigando, mas também um ambiente super gentil em que Aksel desenha com uma das crianças, o casal fazendo as pazes.

Julie observa todo o ambiente à sua volta e sustenta seu desejo de não ter filhos naquele momento.

A festa proibida

Outro momento transacional para o filme, que marca bem a passagem do tempo e o surgimento de novas angústias na Julie, se inicia no evento da publicação do livro de Aksel. Ali ela percebe o quão deslocada está perante as pessoas que ali se encontram, como os discursos não se assemelham e como ela muitas vezes, dentro dessa relação, não é vista e não está em evidência, o que causou em mim um desconforto ao assistir.

Julie então, a partir desse desconforto, deixa o evento com o intuito de ir para casa, mas no meio do caminho encontra uma festa de casamento, entra de maneira sorrateira e ocupa aquele espaço. Ali dá vazão para suas liberdades: dança, bebe, conversa e conhece Eivind, com quem sente uma identificação e interesse.

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Após algum tempo de conversa, algumas bebidas, ambos se encontram em lugar afetivo, brincam com toda aquela situação, exploram o máximo de intimidade que se pode ter com alguém que não seja o sexo, e que não seja considerado traição, já que ambos possuem e amam uma outra pessoa fora daquele espaço.

Nessa cena vemos uma Julie mais pulsante, ainda mais livre e isso é algo que o personagem nos comunica o filme todo, sobre a liberdade dessa mulher, de explorar possibilidades, de assumir riscos, de não ter medo de ser inapropriada.

O aniversário de 30 anos

Em seu aniversário de 30 anos, Julie se depara mais um vez com a ausência do pai. Ele não comparece no seu almoço de aniversário, e quando Julie o visita, é perceptível a escolha dele de não fazer parte da vida dela, dos inúmeros obstáculos colocados por ele e pelo seu total desinteresse na vida de Julie.

A ausência desse pai diz muito sobre os traços de personalidade de Julie: sua dificuldade em manter vínculos e de não sustentar situações difíceis.

A ausência também é um marco temporal no filme muito significativo.

O reencontro com Evie

Um encontro despretensioso entre Eivind e Julie faz com ela se perceba dentro da relação atual e opte pelo término da mesma.

Julie embarca em um relacionamento com Evie, este, uma pessoa completamente oposta a Aksel, mas com quem Julie se sente autêntica (pelo menos por um período curto de tempo).

Porém, Julie é uma mulher desejante, que se arrisca, que se joga, que muda de ideias, que busca pelo novo.

Enquanto Eivind é um homem sem grandes pretensões ou desejos, o que passa a incomodar Julie.

Eles possuem um histórico familiar semelhante, o que os aproxima. Porém essa relação causa um certo desconforto nela e em quem assiste, no que se diz respeito a se enxergar no outro. Julie passa a se incomodar com Eivind, talvez porque naquele momento da sua vida ela estivesse tão mais parecida com Eivind do que gostaria. Assim como ele estava em um trabalho em que não se estimulava, tampouco exigia dela grandes feitos, estava também em uma relação onde não existiam grandes conversas e aprofundamentos. Então, ela transfere a sua frustração para Eivind: culpando, julgando e o provocando.

O fim

Ao se encaminhar para o fim do filme, dois acontecimentos contribuem para o amadurecimento de Julie: a gravidez não planejada e a doença seguida da morte de Aksel.

Julie se descobre grávida em um momento que não era o ideal: dentro de uma crise na sua relação com  Eivind, este que assim como ela, não queria ter filhos.

Esse primeiro acontecimento nos coloca para pensar o quanto muitas vezes, esperamos o momento perfeito para tomar decisões, dar um passo a mais, mas que diversas circunstâncias externas a nós, também influenciam nessa tentativa utópica de estar no controle.

O encerramento do longa ressoou em mim e conversou exatamente nesse lugar: a ausência de controle que temos diante a muitas situações da vida.

Julie descobre a gravidez e em seguida, recebe a notícia de que Aksel está muito doente e hospitalizado.

O reencontro de ambos é muito sensível e começa a fazer encerramentos e nos trazer para concluir essa análise: Julie percebe que fez uma escolha imatura ao terminar com Aksel, ela não tinha ainda a maturidade suficiente para sustentar a complexidade e profundidade da relação dessa relação.

Mas o seu relacionamento com Eivind a fez perceber que não era ainda o que ela buscava.

Em um dos diálogos finais, ainda no hospital, Aksel diz para a Julie que ele sabe coisas sobre ela, que nem ela sabe sobre si mesma, e que quando morrer, todas essas lembranças irão junto com ele. Julie diz o mesmo, e neste momento tão sensível, nós, enquanto telespectadores, entendemos que existe muito sobre nós que apenas o outro é capaz de enxergar e nomear.

Julie amadurece na dor, ela que ao longo do filme não sustenta situações difíceis, permanece até o último instante ao lado de Aksel.

Após sua morte, outra situação que a coloca frente a frente à ausência de controle é o aborto espontâneo pela qual é acometida.

Não há nada que se possa fazer diante dessa situação.

O prólogo do filme corta para Julie alguns anos depois, trabalhando como fotógrafa, vendo Eivind de longe com sua família.

Talvez esse seja o momento em que ela menos aparenta angústia.

A análise final

O filme “A pior pessoa do mundo” retrata de forma intensa, sensível e nos põe a refletir sobre as delícias e as angústias dos vinte, trinta anos.

Sobre como a liberdade, embora mágica, também é cansativa.

As mil possibilidades de escolhas geram angústia.

Para a psicanálise, a angústia é parte fundamental do autoconhecimento, mas angústia em excesso é paralisante.

E é essa a imagem que fica: Julie, após acontecimentos que fugiram do seu controle, já mais madura, aparenta estar menos angustiada do que quando todas as possibilidades e escolhas estavam postas à sua frente.

O filme não se trata de uma comédia romântica, tampouco um filme de humor, apesar de ter momentos descontraídos.

O longa fala sobre uma fase onde as muitas possibilidades da vida de jovens adultos podem ser angustiantes.

Vale destacar e analisar também o papel da mãe de Julie, que aparece no filme em apenas duas cenas curtas. E a ausência de amigos da Julie: no filme não é retratada nenhuma cena ou conversa com amigos e é muito improvável que uma pessoa chegue aos trinta anos, com um “eu” super integrado, livre, sem que tenha alguma pessoa com quem possa fazer uma troca não romântica, afetiva.

A análise do título

Por fim, refletir sobre o título do filme é de suma importância: seria Julie “a pior pessoa do mundo” por ser uma pessoa que sustenta e se compromete com seus desejos? Uma pessoa livre e por conta disso ser associada a uma pessoa egoísta e daí o surgimento do título?