Filme indicado na categoria Melhor Documentário de Curta-Metragem aborda a limitação no acesso a determinadas obras

Foto: Divulgação

Por Aline Gomes*

“Palavra é que nem veneno:
mata, mas pode curar.”

Esse é um alerta e um alento que profere o poeta mineiro Ricardo Aleixo. No poema “Palavrear”, seus versos tocam com sensibilidade o poder da palavra. Embora Aleixo não se restrinja à escrita, mas também explora a palavra falada, os versos do poeta remetem ao filme que concorre ao Oscar de Melhor Documentário de Curta-Metragem de 2024. “O ABC da Proibição de Livros” (disponível no Paramount+) aborda uma atitude contemporânea promovida pelo poder público e pela sociedade americana em cercear o acesso livre e independente aos livros por jovens em plena formação. 

O filme segue um formato tradicional, exibindo textos informativos com dados alarmantes e conceitos que regem a censura dos livros nas escolas americanas. Após um corte, as cenas que seguem apresentam uma mulher centenária com visíveis dificuldades físicas de deslocamento. O trajeto árduo dessa senhora passa a ser narrado com sua própria voz, onde tomamos conhecimento de sua identidade e qual a finalidade de tanto esforço. Trata-se de Grace Leen, que realiza um depoimento forte sobre a proibição de livros em uma escola que está sofrendo esse tipo de censura. Embora esse início tenha uma protagonista mais experiente, o documentário se concentra nas vozes dos leitores iniciantes. 

Ao longo do filme conferimos muitos depoimentos de crianças e adolescentes que, apenas porque participaram do documentário, tiveram a oportunidade de ler os títulos que foram restritos, questionados ou banidos. Os comentários são marcantes e inquestionáveis. Uma menina faz uma pergunta muito importante ao falar de um livro ilustrado sobre Rosa Parks (1913-2005), que em 1955 teve a importante e corajosa atitude de se recusar a ceder o seu lugar no ônibus a um homem branco, tornando-se o início da luta antissegregacionista nos EUA. Sobre o livro, a garota de 9 anos direciona sua pergunta diretamente ao censor ou censora: “Se você foi a pessoa que ajudou a proibir este livro, por que? Simplesmente por que? Você acha que Rosa Parks é uma pessoa ruim ou o seu legado ruim? Você acha que as pessoas não deviam conhecer o legado dela? Por que você escolhe fazer isso? Fico curiosa, por que?” 

Em outro comentário sobre Três com Tango (ed. Kalandraka), livro que trata de Tango, o primeiro pinguim-fêmea a ter dois pais, Ridley, de 9 anos, comenta sobre a proibição: “Eu não entendo. Eles continuam sendo gente, continuam sendo humanos, não se transformaram em lobisomens só por serem gays, lésbicas ou trans”. Sobre o mesmo livro, Korben, de 7 anos, afirma: “Eles só decidiram que se amam. Por que se desfazem destes livros? As pessoas não podem ser quem querem ser?”

O problema da censura é um tema caro aos americanos há muito tempo. Lembremos que, já no século XIX, o pensador político francês Alexis de Tocqueville (1805-1859) havia alertado sobre uma censura operada não pelo Estado, mas pela sociedade estadunidense, a qual ele chamou de “tirania da maioria”. Essa ideia foi desenvolvida no renomado livro A Democracia na América. Infelizmente, as diretoras Trish Adlesic e Nazenet Habtezghi e a co-diretora Sheila Nevins não aprofundam questões históricas relacionadas ao problema na sociedade americana, uma escolha que provavelmente seja consequência do formato um pouco restrito do gênero curta-metragem. Algo que certamente Nevins está acostumada, pois a diretora é veterana na produção documental. Sob sua supervisão, a MTV produziu 40 documentários e recebeu cinco indicações ao Oscar.  

O tema polêmico do documentário não é novidade no mundo cinematográfico, basta lembrarmos do clássico Fahrenheit 451, dirigido por François Truffaut em 1966. O filme adaptou o livro de Ray Bradbury que criou um mundo onde as pessoas vivem em função das telas e os livros são objetos proibidos, e seus portadores são considerados criminosos. Outro clássico do cinema também aborda o tema: Alphaville (1965), ficção científica de Jean-Luc Godard, que cria um mundo habitado por seres destituídos de humanidade, consequência, em grande parte, por serem submetidos a um controle de linguagem, na qual é proibido pronunciar algumas palavras como “amor” e “consciência”, por exemplo. Já na adaptação do clássico de George Orwell, 1984, dirigido por Michael Anderson, lançado em 1956, há o projeto de criar uma nova linguagem, mais restrita e pobre, que seria divulgada pela imposição de um novo dicionário que não contém palavras perigosas como “revolução”, por exemplo. Há ainda a obra do diretor Jean Jacques Arnaud que, em 1986, adaptou o livro de Umberto Eco, O Nome da Rosa. No ambiente da cultura medieval, o leitor que se aproximava do livro “Comédias”, de Aristóteles, acabava morrendo. Resultado do envenenamento das páginas, uma artimanha criada por um monge que considerava a literatura espiritualmente perigosa. 

Infelizmente o problema abordado no documentário do Oscar não é exclusividade dos americanos. Basta lembrarmos que, desde a ditadura militar no Brasil, as estratégias de proibições na literatura se estendem até os dias atuais. Os exemplos são numerosos, houve o caso da Bienal do Livro no Rio de Janeiro em 2019; recentemente tivemos a censura do livro Avesso da Pele de Jeferson Tenório e ainda, a Agência Pública denunciou que muitos títulos estão sendo barrados nas penitenciárias de MG. Os detentos estão sendo impedidos de ler até mesmo um livro de gramática. A pesquisadora Sandra Reimão (EACH/USP.), junto com outros autores, publicou um estudo que aponta a censura de livros no Brasil de 2019 a 2022. Segundo Reimão, a proibição de livros demonstra que, neste período, proliferaram no Brasil atitudes intolerantes e autoritárias que se somavam e tentavam construir uma cultura de vigilância e uma censura moralista, negacionista em relação à ciência e desrespeitosa quanto aos direitos humanos e à diversidade sexual, racial e religiosa.  

Todos os depoimentos dos jovens apresentados no documentário reforçam o sentimento que qualquer leitor já vivenciou alguma vez, aquele furor interno súbito ao ler um romance, ou um choque glorioso de reconhecimento, a surpresa de estar diante de palavras de um estranho capazes de nos fazer sentir menos só no mundo. O filme demonstra que todos saem perdendo quando se impede que a magia da literatura aconteça, sem dúvida, sua cura ou veneno deve ser experienciada por todos.

*Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Especial Oscar 2024