Entrevista abre uma série de conversas com pessoas trans e travestis no Brasil que conquistaram altos escalões no mercado apesar das estatísticas

Foto: Mila Kichalowski

“Como nós vamos conseguir chegar em posição de liderança se nem dentro das empresas conseguimos entrar?”, a indagação é de Gabriel Romão, uma das poucas pessoas trans no Brasil que conseguiram alcançar o topo da hierarquia no mercado de trabalho. Nascido no distrito do Grajaú, extremo sul e periferia de São Paulo, hoje Gabriel Romão é co-diretor executivo da ONG TODXS, a posição mais alta na instituição, posto que conquistou aos 33 anos de idade.

Formado em Pedagogia em 2013 pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Romão trabalha desde os 16 anos e ingressou no mundo corporativo antes de transicionar. Quando ocupou a vaga na TODXS, ele já havia se entendido como pessoa trans entrando em uma rara estatística. Hoje ele conta que há muitas liderenças trans, mas grande parte delas ocupa espaço dentro de empresas que elas mesmas construíram.

O empreendedorismo, portanto, tem sido a chave para políticas de empregabilidade de pessoas trans e travestis e sua atuação na ONG contribui diretamente para a promoção da inclusão e diversidade.

Neste dia da visibilidade trans, trazemos uma conversa exclusiva de Gabriel Romão abrindo uma série de entrevistas que serão publicadas neste canal com pessoas trans e travestis que conquistaram espaços raros de liderança no mundo corporativo, dentro ou fora do terceiro setor. Ainda que sejam poucas pessoas, há presidentes, diretoras e diretores trans atuando na saúde, na cultura, na educação, na política institucional, nos escritórios de advocacia, nos esportes, entre outros.

Confira abaixo a entrevista completa:

Foto: Divulgação

1. Explica um pouco pra gente o que é a Todxs e qual seu papel na organização.

Somos uma organização sem fins lucrativos que tem como missão empoderar a comunidade LGBTI+ e educar a sociedade brasileira, para transformar o Brasil em um país verdadeiramente inclusivo e livre da discriminação. Atuamos na TODXS por meio de projetos de impacto social que potencializam o acesso à renda por pessoas LGBTI+ e na consultoria para a construção de um mundo do trabalho mais equitativo e inclusivo, para refletir em uma transformação estrutural da sociedade.

Em 2023, eu me tornei diretor executivo da TODXS. Este ano, teremos o foco nos nossos projetos de impacto social para comunidade LGBTI+. Prevemos ter duas edições do Embaixador, que é nosso programa de desenvolvimento de lideranças LGBTI+ e que possui a meta de formar mais de 400 pessoas. Também teremos o Fundo TODXS de empreendedorismo para pessoas trans e travestis, com o objetivo de fomentar renda para comunidade T. Além disso, teremos ainda o projeto Respeita Minha Identidade, em que vamos retificar mais de 700 nomes de pessoas trans e travestis em todo o Brasil.

Percebi que queria contribuir para a construção de uma sociedade onde as pessoas não precisassem esperar 30 anos para ser quem elas são.

2. Como foi sua trajetória até chegar a este cargo?

Sou formado em pedagogia e desde do começo da minha busca por estágio, percebi que a sociedade não estava pronta para um corpo negro e LGBTI+. A primeira porta que se abriu para mim foi no terceiro setor e por meio de uma mulher, líder e negra. Desde então, a minha trajetória profissional foi marcada pela educação corporativa. Trabalhei na área de Gente & Gestão em empresas de diversos segmentos, desenvolvendo pessoas e contribuindo com a cultura organizacional.

Em 2020, eu me entendi e me aceitei como pessoa trans, e então decidi começar a minha transição de gênero. Tinha muito receio de como isso afetaria a minha carreira profissional, mas encontrei numa empresa de tecnologia, a Catho, todo suporte necessário para que a minha transição acontecesse de forma acolhedora dentro do ambiente de trabalho.

E isso virou uma chave para mim. Percebi que queria contribuir para a construção de uma sociedade onde as pessoas não precisassem esperar 30 anos para ser quem elas são.

Desde então, todos os meus passos foram em prol de uma sociedade mais justa e inclusiva. Em 2021, entrei no programa de Embaixadores da TODXS, e posteriormente comecei a atuar como especialista de diversidade de forma remunerada em uma consultoria de diversidade e de forma voluntária dentro da área de consultoria empresarial da TODXS.

Em 2022, a TODXS abriu um processo seletivo para o cargo de co-diretor executivo. Fui escolhido para assumir a posição, ao lado do Daniel Kehl, nosso outro co-diretor.

Eu sempre quis uma posição de liderança e há pelo menos cinco anos eu me sentia pronto para a mesma. Mas mesmo me preparando tecnicamente e com bagagem suficiente, essa cadeira de liderança nunca chegava. Sempre que me aproximava dela, as regras do jogo mudavam: o cargo deixava de existir, ou diziam que eu ainda não estava preparado, ou que não tinha o perfil para a vaga. Era como se existisse um teto de vidro que me fizesse continuar sempre como especialista ou sênior da área.

Foto: Mila Kichalowski

3. Você conhece e acredita que há mais pessoas trans ocupando cargos de liderança ou a questão da empregabilidade ainda é um fator preocupante no país?

Eu acredito que as posições de liderança ainda são ocupadas majoritariamente por pessoas brancas, cis e heteros. Um exemplo disso é quando olhamos a quantidade de mulheres negras que ocupam posição de liderança que não chega a 3%, segundo pesquisa da Gestão Kaíros.

Hoje nós temos pessoas trans incríveis na liderança ao redor do Brasil, como a Raquel Virginia da Nhaí, a Danielle Torres da KPMG, Maite Schneider da TransEmpregos ou o Noah Scheffel da educaTRANSforma. Mas este número ainda é ínfimo. Boa parte das lideranças trans e travestis ocupam o espaço dentro de empresas que elas mesmas construíram.

Para mim, as necessidades da população trans ainda são muito básicas: conseguir estudar, ter um emprego digno e com potencial de crescimento, ter acesso a saúde para que se tenha o mínimo e performar bem dentro do corporativo.

Vi uma pesquisa da Fapesp, de 2020, feita com 528 pessoas trans e travestis de sete cidades do estado de São Paulo. Ela mostra que 13,9% das mulheres trans e travestis tinham emprego formal. Já entre os homens trans, o percentual foi um pouco maior, de 59,4%. Ou seja, claro, precisamos sim de mais pessoas trans/travestis em posição de liderança, principalmente negras, mas de fato, como nós vamos conseguir chegar em posição de liderança se nem dentro das empresas conseguimos entrar? Ou, se entramos, não existe um ambiente favorável para que possamos ficar?

Uma alternativa vem sendo o empreendedorismo. Pessoas trans/travestis podem usar o seu potencial. E por isso nós, na TODXS, investimos cada vez mais nessa vertente. O Fundo TODXS para pessoas trans/travestis contribui com um capital semente para o negócio dessas pessoas empreendedoras, além de mentorias para fazer crescer os seus negócios.

4. Como está a sua perspectiva e da organização pros próximos anos em relação a conquistas de direitos de pessoas trans?

Eu acredito que estamos progredindo em relação à pauta. Sigo otimista, mas de forma realista. Sei que as conquistas não vão acontecer a curto prazo e sei que para que a mudança aconteça, se faz necessária uma atuação intencional do corporativo e do poder público.

Hoje já conseguimos ter representatividade em alguns espaços políticos, sociais e corporativos que em alguns anos atrás não seria possível. Eu sou um exemplo disso. Afinal, quantos homens, negros, trans você conhece que é CEO (diretor executivo) dentro de uma organização que não é fruto de empreendedorismo?

Pela TODXS, vamos trabalhar para a comunidade por meio dos nossos projetos de Impacto e Consultoria. Nosso papel é empoderar e fomentar cada vez mais a renda da comunidade e levantando a pauta para todos os espaços que ocupamos.

E eu espero que eu como pessoa trans e negra, contribua de alguma forma para abrir portas para que esse espaço não seja só de um ou duas pessoas da comunidade T e sim que seja uma possibilidade para todes.