Nilma Lino Gomes frente ao quadro de Florestan Fernantes, importante pensador da educação brasileira. Foto: Mídia NINJA

Em meio a uma crise na gestão da educação do país, a ex-ministra da Igualdade Racial e primeira reitora negra de universidade pública Nilma Lino Gomes conversou com a Mídia NINJA sobre as políticas e os retrocessos no setor. O atual ministro Abraham Weintraub anunciou corte de 30% no orçamento das instituições de ensino superior, depois do ex-ministro Velez – que já havia cortado 5 bilhões da pasta em abril desse ano – ter sido demitido após passar vergonha no Congresso ao ser questionado por parlamentares.

Frente aos retrocessos, estudantes e profissionais da área se mobilizaram e fizeram os dois maiores levantes públicos contra o governo. Nos dias 15 e 30 de maio, foram às ruas milhares de pessoas em mais de 250 cidades exigindo a derrubada dos cortes.

No dia em que concedeu entrevista à NINJA, Nilma participava de uma audiência pública na Câmara dos Deputados para debater os impactos das cotas raciais nas universidades. Na oportunidade, ela explicou que as políticas de ações afirmativas têm um caráter emergencial, o que significa que o Estado reconhece que é preciso fazer algo urgente para superar aquele estado de desigualdade tão brutal. “Sem igualdade racial não há democracia”, afirmou Nilma durante exposição.

Confira a entrevista:

Estávamos agora numa audiência pública sobre o impacto das políticas de cotas raciais nas universidades. Você pode nos fazer um resumo sobre a importância dessa política afirmativa?

As ações afirmativas e as cotas raciais, uma das modalidades afirmativas, são políticas de direito acerca das desigualdades de uma sociedade que é extremamente diversa e também extremamente desigual. Dessa forma, não pode ficar de fora da política. Nós temos hoje medidas de ações afirmativas, como por exemplo a Lei 12.711 de 2012 , que todo mundo conhece como políticas de cotas, responsável pelo ingresso de estudantes negros, estudantes indígenas e quilombolas nas universidades públicas brasileiras e nos institutos federais.

Nesse momento nós temos um maior amadurecimento dessas políticas e, ao mesmo tempo, contra os ataques a essas políticas. É um momento muito importante de discutirmos e compreendermos o caráter democrático delas. Por isso mesmo elas não podem acabar, mas devem ser aperfeiçoadas, é isso que estamos fazendo ao discutir com várias pessoas interessadas no significado dessas políticas. São impactos sociais muito positivos que elas produzem, refletindo em um aperfeiçoamento da democracia.

Temos observado uma política de cortes de 30% nas universidades justificado por uma visão ideológica aplicada pelo Ministério da Educação. O que isso tem a ver com a presença dos negros e negras na universidade?

Vivemos em um momento de muitos retrocessos em todas as políticas sociais de direito no Brasil. E, dentro desses retrocessos, temos visto com espanto o ataque à área da educação. Quando o Ministério da Educação resolve fazer um corte de 30% dos recursos destinados à universidade pública, este corte afeta toda uma população brasileira que hoje tem acesso à universidade. É claro que irá afetar com mais incidência aqueles grupos que têm conseguido acessar o espaço da universidade pública por meio das políticas de ações afirmativas, como é o caso da população negra, população indígena, os povos do campo.

Esses cortes ao atingirem a universidade como um todo, atingirão de forma mais incisiva os sujeitos desses coletivos que ainda estão no processo de inserção, não apenas pelo acesso, como também em relação à permanência deles dentro da universidade. Então, é um ataque não só à universidade pública, que vem se democratizando e reconhecendo a diversidade, bem como se abrindo para uma política acadêmica que considera o lugar da ciência e o lugar dos outros saberes importantes dentro da universidade, tensionando e dialogando com as ciências. Esses saberes não surgem do vazio. Se estão dentro, é porque os sujeitos que produzem esses saberes hoje estão nessa universidade por direito. E o ingresso desses sujeitos é via as ações afirmativas e via sua modalidade mais radical que são as cotas.

A política de cotas é para a ampliação de acesso às universidades. Há alguns debates sobre cobrar mensalidade nas universidades públicas, o que seria uma restrição desse acesso. Como vê essa proposta?

A proposta de cobrar mensalidade nas universidades públicas sempre veio da sombra, sempre rodeando a questão pública. São interesses privatistas explícitos que sempre tiveram a intenção de se apropriar deste espaço, que é um espaço que recebe recursos públicos do Estado brasileiro via Ministério da Educação e que tem a ver com todo um projeto de privatização do público de um modo geral. Trata-se de uma forma de restringir e colocar uma série de empecilhos pra que avancem as políticas como as ações afirmativas e a presença dos sujeitos que historicamente não estavam dentro do ensino superior.

Então, além de ser uma trama biológica, política de construção de um projeto restritivo de nação, de ataque à democracia, ela é um meio, um caminho de efetivar um ataque via ensino superior e pelo impedimento de condições igualitárias para estudantes de diferentes pertencimento étnico-raciais e níveis socioeconômicos diversos que estejam hoje usufruindo o direito à educação. Esse foi um direito pelo qual lutamos muito.

O ensino superior não era pensado como direito à educação. Nós, da luta social, do campo progressista, transformamos e ressignificamos o lugar do ensino superior como direito. Por isso hoje nós temos políticas de ações afirmativas.

Portanto esse ataque via possibilidade de adoção de mensalidades nas universidades públicas é um ataque à democracia e ao reconhecimento dos direitos, principalmente dos sujeitos diversos, tratados como desiguais historicamente.

Muitas têm sido as reclamações sobre o FIES, denúncias de não pagamento de parcelas e do desmonte da política que é avaliada como bem sucedida. Por que esse ataque ao FIES?

A política do FIES foi aperfeiçoada nos últimos tempos, no governo Lula e Dilma e é uma política que possibilita estudantes pobres, que trabalham o dia inteiro e não têm condições de cursar uma universidade pública, cursos que muitas vezes exigem uma dedicação exclusiva desses estudantes durante a manhã e tarde. Diz respeito às vagas das universidades públicas que não dão conta de comportar todos os candidatos que pleiteiam o ensino superior.

O acesso à universidade privada pelo FIES proporcionam a um grupo que não são os estudantes ricos e de classe média, mas são estudantes pobres que ingressam via o próprio FIES, via o PROUNI (Programa Universidade para Todos). Então, esse ataque, o desmonte do FIES, é também parte desse projeto de impedimento de que outros sujeitos tenham acesso ao ensino superior. É um travamento e uma elitização do ensino superior.