A xenofobia e a capitalização por trás das conquistas na luta pela representatividade asiática na indústria cinematográfica

“Vidas Passadas”, indicado a Melhor Filme. Foto: reprodução

Ana Kinukawa*

Desde 2020 a premiação hollywoodiana inclui obras asiáticas entre os indicados a Melhor Filme, porém essa inclusão pode não apenas ser sintomática, como também uma potencializadora da desumanização dos próprios asiáticos.

Tanto na grande mídia estadunidense e brasileira, quanto nas da Ásia as conquistas de artistas e narrativas asiáticas têm sido celebradas como marcos da representatividade de uma parcela da população tradicionalmente sub ou mal representada nos filmes em inglês. Com todas as glórias atribuídas a essa grande massa de pessoas arbitrariamente chamada de “asiáticos”, é confortável não se questionar sobre o que ou quem está sendo realmente comemorado ou o que escondem por trás desses feitos, como as problemáticas denunciadas pelo movimento “Stop Asian Hate” ou a exploração de países e pessoas asiáticas por empresas e interesses econômicos orientalistas. E a forma como encaramos e posicionamos essa tal representatividade pode ou levar a frustrações perpetuadas não apenas para esses grupos, mas para outras minorias, ou pode gerar transformações significativas e benéficas à sociedade como um todo.

Quem não se lembra da febre em torno de “Parasita” na noite do Oscar de 2020? Brasileiros e sul-globais de todos os cantos preenchiam a internet com demonstrações de apoio em forma de memes, vídeos e caps lock ao diretor Bong Joon-Ho e ao merecido prêmio inédito levantado por Miky Lee. Era começo de fevereiro de 2020, o Twitter ainda existia, “Bacurau” e “Minha Mãe é uma Peça” faziam marcos no cinema nacional e estávamos a aproximadamente um mês da declaração oficial de uma pandemia global. Outro mundo. Mas o que não mudou de lá para cá foi a presença de pelo menos um filme “asiático” indicado na principal categoria da Academia, como o ganhador do ano passado “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo” e o indicado deste ano, “Vidas Passadas”. 

Em paralelo e curiosamente indo no caminho oposto, também a partir de 2020, começaram a ser denunciados e divulgados com maior frequência e coragem casos de racismo e xenofobia contra pessoas de ascendência asiática em Nova York e Paris, em salões de massagem de Atlanta, no metrô carioca, pelas ruas do bairro do Bom Retiro, em escritórios de empresas e redações de jornais em São Paulo. A Covid-19, ao mesmo tempo que promoveu de maneira vertiginosa o consumo de conteúdo fora do eixo EUA-Europa, como as novelas sul-coreanas ou turcas e os próprios animes, fez do rosto amarelo o novo vilão na narrativa globalizada sobre a crise pandêmica que o mundo vivia, algo marcante principalmente para aqueles residentes ou naturais de países não-asiáticos, como é o caso das comunidades presentes no Brasil e nos Estados Unidos.

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Acontece que até os vilões merecem uma assinatura da Netflix (paga, óbvio), principalmente quando se encaixam entre as nacionalidades que mais crescem em termos numéricos, as mais jovens e as com o melhor potencial de mercado consumidor para as próximas décadas. O Oscar, como maior evento de reconhecimento artístico da indústria de Hollywood, além de não ser imune à lógica de mercado, é um dos seus grandes instrumentos para definição de tendências e de valor no cinema mundial. Na atual era da disputa por atenção, uma indicação ao Oscar é o suficiente para dar a um filme a bilheteria que não faria em toda sua vida útil na sala de cinema. Incluir pessoas e histórias de crescentes mercados é atualizar as estratégias de exploração de uma lógica colonizadora e orientalista que desumaniza povos asiáticos dentro e fora da Ásia, e que estatueta nenhuma consegue alterar por si só.

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O que “Vidas Passadas” consegue é firmar ainda mais a tendência de indicações asiáticas entre os Melhores Filmes para os membros da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, mostrando que o que não falta são boas histórias contadas por artistas asiáticos, ou pelo menos asiático-americanos. Simultaneamente, é um filme dirigido por Celine Song, filha de um cineasta coreano que migrou para o Canadá, casada com um diretor indie de sucesso ascendente e cuja trajetória se distancia a passos largos daquelas das asiáticas vítimas do massacre em Atlanta ou das asiáticas marrons da Palestina, ignoradas pelo cinema como um todo. Além disso, é uma obra que se beneficia do consumo lucrativo da “hallyu”, a onda de cultura sul-coreana do K-pop e dos K-dramas, já que tem em seu elenco uma reconhecida estrela do meio, o ator coreano-alemão Tae Yoo. É importante não cair na armadilha do tokenismo de colocar sobre um único representante a imagem de uma representação complexa e múltipla. Ou seja, não acreditar na falácia de que o único representante asiático na lista de Melhor Filme da premiação dos EUA representa a Ásia inteira ou mesmo todos os asiático-americanos. 

Tanto a desumanização por trás dos ataques xenofóbicos e racistas durante e após a pandemia do Covid-19, quanto a desumanização por trás da exploração da mão-de-obra e do mercado consumidor em países da Ásia estão em cada uma das indicações “asiáticas” no Oscar. Seria ingênuo acreditar que não. Porém, melhor do que ignorar os problemas e crer em uma mudança pelo simples fato de ter filmes indicados a uma premiação, é compreender como se deu a construção para consolidar a presença asiática no Oscar, que “Vidas Passadas” representa neste ano. 

Foi exatamente contra o tokenismo em tempos de K-pop, “Parasita” e Covid-19 que asiático-americanos, incluindo amarelos, marrons e povos do Pacífico, se organizaram politicamente em diferentes frentes para que o momento que viviam não fosse simplesmente individualizado e perdido em mais traumas e apagamentos. Transformaram a homogeneização dos ataques do “Asian Hate” em uma força de agregamento coletivo, inclusive fazendo importantes alianças com outros grupos minoritários, como quando demonstraram amplo e público apoio ao movimento do “Black Lives Matter”. Apenas organizando política e coletivamente essas migalhas tokenistas da branquitude em locais de grande atenção midiática, como o Oscar, é que a representatividade conta como potência transformadora e combatente das questões problemáticas que contribuíram para a sua necessidade em primeiro lugar. Como disse Angela Davis, em uma entrevista com a diretora Ava DuVernay para a revista Vanity Fair: “Diversidade e inclusão sem mudanças substanciais, sem mudanças radicais, não conquistam nada”.

*Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Especial Oscar 2024