O presidente Jair Bolsonaro sempre deixou claro suas concepções sobre determinados segmentos da sociedade, e na sua campanha em 2017 não deixou dúvidas: “Fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas (…) Acho que nem para procriar ele serve mais”. Este discurso foi realizado no clube Hebraica, na zona sul carioca, antes de ele ser eleito presidente. Quatro anos depois, conversamos com uma liderança da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ) para entender como foram as tratativas do governo federal até então.

Segundo uma das lideranças, está tudo paralisado e até a interlocução com a Fundação Palmares, órgão do governo responsável pelas questões quilombolas, está quase inviabilizada. Esse é o testemunho de Nilce Pontes, do quilombo Ribeirão  Grande Terra Seca, no município de Barra do Turvo, interior de São Paulo. A comunidade fica na mesma região onde o presidente passou sua infância e se criou, no Vale do Ribeira. Nilce, atualmente, é coordenadora da Conaq pelo estado de São Paulo e faz parte de diversos movimentos, entre eles a Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

Na entrevista, ela fala sobre a solidariedade dos quilombolas com outros territórios em situações de insegurança alimentar durante a pandemia, denuncia despejos durante a crise sanitária e critica as flexibilizações ambientais que afetam os territórios. Na sua opinião, é um momento de fragilidade e o racismo estrutural tem dominado todas as políticas públicas governamentais. Este é mais um tema identificado pela iniciativa Agroecologia nos Municípios, realizado pela ANA. 

Foto: arquivo pessoal

O que é importante destacar hoje na pauta quilombola em relação à pandemia e ao atual governo?

Nossa prioridade, nesse momento, é pensar o desenvolvimento das comunidades pós-pandemia, porque estamos em um período, mais do que nunca, de fragilidades nos territórios devido à ação política do governo Bolsonaro. Estão desmontando as políticas públicas e esse desmonte vem se ampliando cada vez mais em todos os estados. O avanço da mineração e das barragens, a falta de regularização fundiária e de espaço para a produção de alimentos das comunidades nesse momento de fragilidade. Temos também um desafio muito grande frente à privatização, principalmente das unidades de conservação, cujas áreas, muitas vezes, estão dentro dos territórios quilombolas. 

Para nós, que estamos territorializados, vemos com orgulho o fato de produzir e ajudar outras comunidades com alimentos. Estamos fazendo essa força tarefa, uma região está fornecendo alimentos para outras, que não têm como produzir ou muito menos acessar. Muitas comunidades quilombolas no Brasil não estão cadastradas ou reconhecidas pelos poderes públicos locais, estaduais ou nacional. São as que mais perecem, porque não têm terra para produzir alimentos ou com a paralisação dos serviços não têm como produzir ou garantir o seu sustento. Não tem nenhuma plataforma que garanta a elas acessarem as políticas públicas que foram construídas para as comunidades quilombolas, como a questão das cestas básicas da Conab.

Para nós, hoje, o desmatamento e as desapropriações dos territórios, mesmo nesse momento de pandemia, são o mais grave, porque o governo entrou com ação de despejo em algumas comunidades. Estamos em um momento de fragilidade e precisamos lutar cada vez mais para resistir e nos fortalecer nos  territórios. As ações do governo federal e do Legislativo vêm nos fragilizando, quando flexibilizam a legislação, como é o caso do ministro Ricardo Salles, que abre para a mineração, o desmatamento e, cada vez mais, para a expansão agrícola predatória. Ao mesmo tempo, vemos vários condomínios e propriedades sendo construídas dentro dos territórios quilombolas, mesmo num momento de crise.

Além destas questões, tem outras também urgentes em relação aos quilombolas?

São vários pontos de enfrentamento. Por exemplo, na educação à distância, implantada por causa do isolamento social decorrente da pandemia, é necessário que as/os estudantes tenham acesso à internet para assistir às aulas. Sabemos que a cobertura da internet é deficitária no Brasil, sobretudo nas zonas rurais. Então, é muito grave termos crianças impedidas de ter acesso à educação porque também não têm acesso à internet. Quando a pessoa tem, é um ponto fixo na comunidade, como no meu caso. Todas as famílias têm que ir até o espaço público da Associação Remanescente de Quilombos dos Bairros Ribeirão Grande Terra Seca. Como se garante uma educação para essas pessoas que não têm essas tecnologias? Outra questão é a saúde, que já era precária e ficou mais ainda com a pandemia. Principalmente para a gente, que é mãe ou avó, e que tem a  responsabilidade de cuidar da família, é muito complicado. Geralmente, quando levamos as pessoas ao posto do PSF [Programa  de  Assistência à Saúde da Família], é porque realmente precisamos, não vamos por uma dor de cabeça ou uma questão simples. E, muitas vezes, encontramos barreiras, porque só pode ser atendido se estiver com sintomas de Covid.

Conseguimos, depois de muita luta do movimento, o acesso à vacinação dos territórios quilombolas contra a Covid-19, mas estamos com um desafio muito grande. Temos garantido essa ação dentro dos municípios, mas aquela regrinha que nos coloca como inimigos da sociedade ainda prevalece. O pré-requisito de que só pode tomar a vacina quando o gestor público diz que só quem a nossa associação declara como quilombola. Só que, na maioria dos estados, as famílias que ainda estão no entorno dos territórios e ainda não tiveram suas terras regularizadas fazem parte da comunidade. Para o bem ou para o mal, eles são parte do território, e isso tem trazido algumas consequências. O gestor público entende que a vacinação é para o quilombola.  Então, o terceiro ou agregado que está na comunidade ou quilombola que está fora da propriedade não são atendidos. É uma discussão muito grande sobre a imunização dos quilombolas.  

Sobre a luta, prioritária e histórica, para a regularização fundiária, é verdade que os governos progressistas de Lula e Dilma receberam muitas críticas, mas realizaram avanços? Como está essa situação desde a saída da presidenta Dilma?

Não houve nenhum avanço na regularização dos territórios quilombolas, tudo ficou paralisado desde então. Aumentaram as ameaças sobre os territórios, mas nenhuma garantia de direito e nenhum estado pode dizer hoje que avançou. Até o governo Temer, existia pelo menos um diálogo entre comunidades e o poder público, mas com a chegada do Bolsonaro isso simplesmente acabou. Até nós, enquanto movimentos sociais, tivemos certo descontrole, porque ficamos sem saber com quem conversar dentro da estrutura pública. Não sabemos quem representa quem ou o quê, só sabemos que esse governo não é para nós e não está a serviço dos cidadãos do campo e das florestas. Vive em prol do desenvolvimento da elite, e isso tem trazido muitos prejuízos para as comunidades como um todo: indígenas, quilombolas, caiçaras, caboclos, ribeirinhos etc . Ou seja, sentimos que todos os  povos e comunidades tradicionais estão sob ameaça desde o governo Temer. Não conseguimos vislumbrar um futuro com esse governo atual, só vemos retrocessos e desmonte.

Como estão os dados das titularizações e homologações dos territórios quilombolas nos últimos anos?

Houve uma paralisação em todos os processos, não houve nenhum avanço. Segundo a CONAQ, das 3.200 comunidades quilombolas reconhecidas até então, menos de 7% delas estão regularizadas/tituladas. Existe um racismo fundiário e uma elevadíssima concentração de terra. O Censo Agropecuário (2017) trouxe, pela primeira vez, a cor do proprietários dos estabelecimentos rurais no Brasil (IBGE,2020). Produtores pretos ou pardos se concentram em pequenos estabelecimentos, enquanto brancos são maioria conforme aumenta a área. Cerca de 47,9% dos estabelecimentos agropecuários tinham produtores declarados como brancos, proporção maior que a dos estabelecimentos com produtores que se declararam pardos, pretos e indígenas.

No caso quilombola há a Fundação Palmares com essa atribuição jurídica em relação aos territórios, como tem sido a interlocução?

Não existe um diálogo com esta instituição. Para agendar uma reunião, temos conseguido contato com uma pessoa que é antiga lá, mas nunca teve uma postura de apoio. Ela sempre esteve lá como uma porta, tanto para o bem como para o mal, e agora até com ela está difícil a comunicação.  

Quando falamos de quilombos, em geral há uma associação com o rural, mas existem muitos quilombos urbanos também. Como é essa questão e até que ponto o racismo se manifesta nestas diferenciações?

Nesse momento de governo Bolsonaro, o racismo institucional está mais acirrado do que nunca. Se para as comunidades rurais está complicado, você imagina a situação dos quilombos urbanos, que dependem das políticas públicas dos governos federal, estadual e municipal. Eles precisam acessar esses espaços de alguma forma, mas o racismo estrutural está tão impregnado que a gente acaba sem muita opção. Tanto é que temos muito retorno de famílias quilombolas das cidades às comunidades, mas para amenizar, temos mandado muitos produtos das comunidades às famílias que não têm acesso à produção agrícola. Elas têm vivido mais de assistencialismo do que de programas de governo.

“O racismo estrutural está tão impregnado que a gente acaba sem muita opção”

Dentro do movimento quilombola existe alguma discussão específica sobre a questão da mulher?

Em 2015, foi criado um Grupo de Trabalho (GT) para discutir questões de violência doméstica, que está aumentando, desenvolvimento econômico e muitos outros temas relacionados à mulher. Estávamos avançando nessa pauta, mas devido à pandemia paralisamos e só tem ocorrido conversas online. Estão se formando durante a pandemia alguns GTs regionais também de mulheres da Conaq, e a questão da segurança alimentar e do Covid têm sido as pautas centrais nesses coletivos.

Você falou sobre redes solidárias de doação de alimentos e a insegurança alimentar, como a agroecologia entra na estratégia quilombola?

A agroecologia entra como uma ferramenta importante na conservação da vida, cada vez mais se faz necessária. Precisamos trabalhar a segurança alimentar, no sentido de garantir alimento, acolhida, sustentabilidade dos territórios etc. Então, ela tem sido forte nesse sentido, e as mulheres estão se organizando e produzindo suas hortas para o seu próprio alimento. Elas também estão se comunicando mais entre elas mesmas, na troca dos alimentos, dos saberes etc. No GT Mulheres da ANA, por exemplo, discutimos as disputas de narrativas e conceitos da agroecologia, o diálogo do campo com a academia. Porque os nossos saberes do campo têm uma forma e a academia tem outros. Então, temos feito esse debate de que os nossos saberes de produção são tão importantes quanto os conhecimentos acadêmicos. Precisamos achar um meio termo, falar sobre o que é agroecologia e quais manejos se enquadram nesse conceito.