Os dez filmes que concorrem a uma estatueta de ouro, entre curtas e longas-metragens, buscam traçar a cartografia das mais prementes inquietações do nosso tempo (ou almejam, de fato, estipulá-las)

Cena de All That Breathes. Foto: Divulgação

Por Juliana Gusman

Apesar de o documentário ser reivindicado, por diversos pesquisadores e pesquisadoras da área, como um campo cinematográfico com gêneros e formatos narrativos específicos, e não como um afluente daquele que seria considerado o verdadeiro cinema – o ficcional –, as produções inscritas nesse domínio ainda mobilizam muito perifericamente as atenções na mais midiática premiação da indústria do entretenimento. Não obstante, os dez filmes indicados à estatueta de ouro na 95ª Cerimônia dos Academy Awards – entre curtas e longas-metragens – são indicativos de algumas das nossas principais urgências; ou pelo menos daquelas que têm assolado, mais radicalmente, os países do Norte Global. 

Desse conjunto de obras, cinco são dirigidas por realizadores ou realizadoras estadunidenses, uma por um canadense e outra por um dinamarquês, o que já delineia a geografia de suas preocupações políticas. Isso não significa menorizar relevâncias, mas, talvez, relativizar a universalidade de certos debates. Mesmo nas categorias mais marginalizadas, esquecidas – recordemos que, em 2022, o prêmio para o excelente The Queen Of Basketball (Ben Proudfoot, 2021) sequer foi entregue ao vivo – e, por isso mesmo, penetráveis do Oscar, parece haver uma notável regulação discursiva, que prioriza determinadas histórias em detrimento de outras. 

Americanidade em crise

Evidentemente, sempre haverá, nesse tipo de evento, a ascendência das contendas que perturbam as ilusões civilizatórias dos Estados Unidos. A americanidade em crise informa, por exemplo, The Martha Mitchell Effect, de Anne Alvergue e Debra McClutchy, que joga uma nova luz sobre o caso Watergate, já bastante explorado na cultura audiovisual. Por meio do manejo de um vasto material arquivístico – de programas televisivos a grampos telefônicos –, sobreposto por comentários em off de diferentes jornalistas, o curta, disponível na Netflix, reconstitui o perfil da personagem que lhe dá nome, esposa do procurador-geral do governo de Richard Nixon, John Mitchell. Vistos a contrapelo, os acervos sobre essa peculiar figura midiática são reveladores dos papéis de gênero da época. Ao mesmo tempo em que Martha Mitchell encarnava a esposa ideal, sua personalidade expansiva e comunicativa passou a perturbar autoridades quando ela decidiu se imiscuir nos escândalos que envolveram o Partido Republicano nos anos 1970. A histeria feminina é revigorada nas tentativas de rebaixamento de uma mulher que buscou desafiar o mundo dos homens. 

Cena de The Martha Mitchell. Foto: Divulgação

Stranger at the gate, de Joshua Seftel, abeira-se do complicado tema dos mass shootings, que acontecem de tempos em tempos nos país que se orgulha da sua suposta solidez democrática, mas que sempre está em ponto de ebulição. Através de uma série de entrevistas, o filme produzido pela revista The New Yorker nos apresenta a Richard “Mac” McKinney, um ex-fuzileiro naval que planejou um massacre em uma mesquita em Munice, Indiana. O protagonista, surpreendentemente, é um dos depoentes, cuja primeira fala é embargada pela dureza da pergunta: “como matar pessoas mudou quem você é?”, apunhala o documentarista. As falas – sempre no presente – constroem uma tensão progressiva, agravada pelo questionamento ético que insiste em emergir ao nos depararmos com a disposição plena das pretensões assassinas de McKinney. Aliás, tenta-se recuperar, com minúcias, os acontecimentos que ajudaram a edificar sua vocação homicida: percorremos seus traumas infantis e juvenis, assim como rememoramos os atentados do 11 de setembro, catalizador de seus adormecidos preconceitos. Ao final, o curta se envereda para redenções inesperadas, coerentes, contudo, com o tipo de mensagem que o Oscar gosta de glorificar. A despeito de contradições sociais, o sonho americano pode prosperar.  

Guerras (de sentidos)

Quando as lentes do Ocidente não se voltam para dentro, em um exercício às vezes generoso de autorreflexão, elas apontam para seus interesses externos, raramente com a mesma complacência. Não que as personagens de Navalny, do canadense Daniel Rohmer, mereçam gentilizas. O longa, uma produção da HBO Max e da CNN Films que estreou em Sundance e percorreu uma exitosa jornada em premiações e festivais – no Brasil, foi exibido no É Tudo Verdade –, enreda-se na tentativa de assassinato do mais destacado opositor de Vladimir Putin na Rússia, Alexei Navalny – ele mesmo, um sujeito, no mínimo, controverso. Depois de se recuperar do envenenamento que quase o aniquilou, Navalny se articula com jornalistas da Bellingcat e da CNN para investigar o crime. Todas as pistas, desleixadamente deixadas pelo Kremilin, apontam para o óbvio. 

Navalny. Foto: Divulgação

O documentário muscula sua carga dramática ao construir uma permanente sensação de imprevisibilidade – mesmo sendo uma obra acabada, temos a impressão de que acompanhamos o desenrolar da trama ao vivo. A própria utilidade política do documentário – que sofrerá alterações a depender do seu desfecho – é colocada, a todo momento, em dúvida. Impressiona o volume de registros colhidos por uma persistente observação de longo prazo, o que permite, justamente, o suspense erigido no jogo de temporalidades proposto pela obra. O ritmo de Navalny é quase ficcional; transitando com competência entre o thriller e o melodrama, não há como escapar de seus assombros. Há uma cena, em particular – e quem viu, sabe exatamente qual é – que sintetiza a potência da indicialidade documental: de tão surpreendente, quase desacreditamos daquilo que se vê. 

Uma possível derrota de Navalny, que divide favoritismos, seria tão inimaginável quanto. Pouco provável que a Academia deixe de coroar um filme que, além de ser anti-Putin, é realmente extraordinário. 

Coabitar o mundo

Um outro nicho de abordagem, porém, parece contemplar flagelos mais coletivos. A questão ambiental perpassa uma sorte de obras, como The Elephant Whisperers – na tradução para o português, Como cuidar de um bebê elefante –, da estreante Kartiki Gonsalvez, para a Netflix. No Mudumalai National Park, localizado ao sul da Índia, o casal Bomman e Belli acolhem o desamparado Raghu e com ele estabelecem uma bonita relação interespécie. Tanto a exuberância do santuário, quanto a tragicidade de sua devastação pelo fogo, são alentadas por planos abertos, muitos deles zenitais (de cima para baixo) – não se economiza o uso de drones. A montagem às vezes soa apressada, mas sugere um tenro deslumbramento de uma cineasta que parece ansiar, ao fim e ao cabo, pela partilha de tal encantamento. 

Em alguns aspectos, The Elephant Whisperes conversa com All that breathes (Tudo o que respira), outra produção indiana, dirigida por Shaunak Sent, que, assim como Navalny, integra o catálogo da HBO Max. O longa, vencedor do Grande Prêmio do Júri da Competição Mundial de Documentários no Festival de Sundance e do Golden Eye de Melhor Documentário no Festival de Cannes em 2022, também recorre à plasticidade estética para evidenciar contrastes: no caso, entre a natureza selvagem e a decadência urbana adoecedora de Nova Delhi. Os irmãos Saud e Nadeem dedicam-se ao resgate de milhafres, aves de voo firme, descritas por eles como “pássaros que nadam”. São inteligentes e acabaram se adaptando aos infortúnios. Alimentam-se do lixo, dando-lhe fim sob sérios riscos: os milhafres comem pontas de cigarro e se afogam nos céus. Isto posto, diferente de The Elephant Whisperes, a edição de All that breathes cadencia um andamento mais lento, quase meditativo – nem sempre fácil de assimilar, é preciso dizer. Mas há de se cultivar a paciência e o silêncio para apreender e apreciar microuniversos.

Haulout. Foto: Divulgação

Assim como All that breathes, o russo Haulout é um filme de demoradas esperas e poucas palavras. Os documentaristas Maxim Arbugaey e Evgenia Arbugaeva se juntam ao cientista Maxim Chakilev em Cape Heart-Stone, no mar de Chukchi, no Ártico. Chakilev estuda o comportamento de morsas e está à espreita. Aqui, os planos aéreos são tão estéticos quanto políticos: somente eles dariam conta de dimensionar um oceano de 95 mil animais em agonia. Com um domínio visual pujante, elabora-se, na montagem, pertinentes argumentações. Há duas cenas, com dois filhotes de morsas, que transmitem com brutalidade crua o desamparo e a desesperança de quem se defronta, sem esquivamentos, com uma das consequências mais imediatas das mudanças climáticas. 

Fire of love – em uma péssima e redutora tradução, Vulcões: a tragédia de Katia e Maurice Krafft, exibido na Disney Plus – é, provavelmente, o filme mais instigante desse agrupamento. A obra dirigida e roteirizada por Sara Dosa – que venceu, com razão, o Prêmio de Montagem Jonathan Oppenheim em Sundance – gira em torno de um casal de célebres vulcanologistas, ambos nascidos na Alsácia pós-guerra. Trata, como os outros documentários, da nossa relação (inadequada) com a natureza. As imagens, hipnotizantes, são todas de arquivo, feitas por Katia e Maurice. Não havia tantos drones no século passado, mas sobejava a coragem de se colocar no corpo a corpo com a vida. Em Fire of love, a trilha sonora poetiza a correnteza dos rios de lava: o mergulho nas placas tectônicas é profundo e sedutor.  

As imagens não são desconcertantes, somente, pela beleza artística. A película que falha, o enquadramento que treme e a gravação que é interrompida como prenúncio de fatalidades conseguem atiçar imaginações, dilacerar espectatorialidades e materializar fantasmas. Como nos alerta o filósofo Didi-Huberman, as imagens dizem mais quando fracassam. A narração alinhavadora de Miranda July evidencia e eleva espantos. 

Fira of Love. Foto: Divulgação

A vida comum

Continuemos com Fire of Love, que não é um filme apenas sobre nossa (des)integração com as forças do planeta. Seu teor (auto)biográfico cativa audiências e fertiliza engajamentos. O documentário, de corte ensaístico, também versa sobre as possibilidades do próprio cinema. Katia e Maurice não se reconheciam como cineastas, embora tenham sido exímios fabuladores. Ela preferia fotografar, bressonianamente, os instantes decisivos das revoluções da terra, enquanto ele orquestrava a câmera para inventariar aventuras com esmero e sensibilidade criativa. Ainda, valiam-se da penetrabilidade do discurso fílmico para amplificar seus saberes e evitar calamidades certas – comprometeram-se com essa difusão, sobretudo, depois de uma erupção em Tolima, na Colômbia, em 13 de novembro de 1985, que vitimou cerca de 23 mil pessoas. 

Por último, Katia e Maurice parecem tentar equacionar, com o aparato cinematográfico, o descompasso entre o tempo da humanidade – controlado e monitorado – e dos vulcões – francamente imprevisível –, fabricando eternidades acidentais. Justo eles, que nunca temeram a morte, encontraram um jeito de trapaceá-la. 

O tempo também é o mote e motor do documentário mais atípico entre os indicados ao Oscar desse ano. How to measure a year? (Como se mede um ano) – exibido no Festival de Locarno e no É Tudo Verdade, no qual se consagrou vencedor – parte de um dispositivo simples: o diretor Jay Rosenblatt conversa com sua filha, Ella, no dia do seu aniversário, dos seus dois aos seus 18 anos. How to measure a year? nos lembra da grandiosidade das coisas pequenas. 

A conferir

All the beauty and the bloodshed, de Laura Poitras, ainda não está disponível comercialmente no Brasil. O documentário, cuja estreia aconteceu no 79º Festival Internacional de Cinema de Veneza, onde foi premiado com o Leão de Ouro, passou rapidamente pelas salas brasileiras durante a 46ª Mostra de Cinema de São Paulo. A obra traz elementos biográficos da fotógrafa Nan Goldin e discute sua lida com a crise de opioides dos Estados Unidos.  

Outro filme anda inédito no país é A house made of splinters, de Simon Lereng Wilmont, laureado por sua direção no Festival de Sundance. Assim como Navalny, ecoa conflitos bélicos ao retratar a precariedade que acomete crianças em um orfanato ucraniano sob constante ameaça russa.

Um último lembrete: o pré-candidato brasileiro ao Oscar, o necessário Quando falta o ar, de Anna e Helena Petta estreia, hoje, nos cinemas. Uma oportunidade imperdível para mapearmos nossos próprios dilemas. 

Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Especial Oscar 2023