‘Medusa’: grito e libertação feminina em novo filme de terror brasileiro
Filme de Anita Rocha da Silveira integrou a seleção oficial de festivais como Cannes, Toronto e Mostra SP
Por Sabrina Ventresqui
“Medusa” é um filme de terror brasileiro que ganhou destaque em inúmeros festivais internacionais, dentre eles o de Cannes e Toronto. Escrito e dirigido por Anita Rocha da Silveira, é estrelado por Mari Oliveira, Lara Tremouroux, Joana Medeiros, Felipe Frazão, Bruna G, Carol Romano, João Vithor Oliveira, Bruna Linzmeyer e Thiago Fragoso. Com produção de Vânia Catani.
A obra narra a história de Mariana (Mari Oliveira), uma jovem enfermeira, obcecada com a própria aparência, em ser e parecer perfeita. Ela faz parte do coral da Igreja que frequenta e vive sob as regras da moral e bons costumes em acordo com os princípios da instituição religiosa.
Vale mencionar que a trilha sonora é impecável. As músicas cantadas pelas servas de Deus são maravilhosas. A produção tomou uma decisão acertada ao incluir as cenas dos ensaios das apresentações.
Ela e suas amigas de ministério são deslumbradas com a história de uma atriz muito popular do passado, chamada Melissa, que teve o rosto queimado durante uma festa de Carnaval, saiu da mídia e nunca mais foi vista. Ou seja, ninguém sabe o paradeiro ou a aparência atual de Melissa.
Desta forma, faz alusão à história de Medusa, que intitula o longa. Na mitologia grega, Medusa era uma mulher com serpentes no lugar do cabelo e cujos olhos podiam transformar aqueles que olhassem diretamente para ela em pedra.
Em um dos mitos, Medusa era uma jovem e atraente sacerdotisa de Atena. Foi estuprada por Poseidon, deus dos mares. Então, Atena, a deusa da sabedoria, a transformou em uma criatura de aparência grotesca e amedrontadora para puni-la. Ou seja, até mesmo na mitologia, as mulheres são punidas por erro dos homens.
Belas, recatadas e do lar, Mariana e suas amigas da Igreja são submissas ao seu pastor e aos homens e suas ações são sempre inspecionadas com olhos de águia, afinal, elas precisam dar exemplo para as meninas mais novas.
Mas, além de viver dessa maneira, elas querem que as demais mulheres da sociedade tenham comportamento similar e vivam suas vidas da mesma forma que elas. Para isso, o grupo sai durante à noite, aterrorizando e espancando garotas que expressam atitudes e condutas diferente delas e que elas não aprovam e as classificam como promíscuas.
E a promiscuidade deve ser combatida pelas servas de Deus, então, para elas, uma boa surra deve bastar para modificar os hábitos das “meretrizes” da sociedade, que não são nada mais, nada menos, do que mulheres livres.
Determinada a encontrar Melissa e revelar ao mundo sua aparência tenebrosa, Mariana começa a trabalhar em um hospital e a partir de então, a trama começa a se desenrolar.
“Medusa” faz uma paródia e obviamente crítica sobre as Igrejas evangélicas e a hipocrisia presente nesses templos, que na maioria das vezes, deveriam ser locais de fé, idôneos, afastados da vaidade, corrupção e apego a bens materiais, contudo, não é isso que acontece na prática.
O filme expõe como as mulheres são vítimas do patriarcado a todo o momento. A preocupação excessiva com a aparência, vista nas personagens de Mariana e de sua amiga Michele (Lara Tremouroux), é apenas um reflexo de uma sociedade patriarcal e em como as mulheres são cobradas o tempo inteiro para serem perfeitas. Tanto na aparência, como no comportamento. Um fio de cabelo fora do lugar já é motivo para humilhações e “chamadas de atenção” das colegas.
As mulheres são colocadas sob um microscópio, qualquer pequena imperfeição ou erro são expostos e imediatamente repreendidos. Porém, o mesmo não acontece com os homens. Eles podem errar, porque seus erros são aceitos e encorajados, pois faz parte do processo de amadurecimento, certo? São apenas meninos, mas pessoas do sexo feminino não têm esse privilégio. Precisam ser perfeitas, mas perfeição não existe.
A escolha de ambientar o filme em um contexto religioso só deixa mais claro o quanto é desigual a realidade de uma mulher em comparação com a de um homem. Se uma mulher fala o que pensa, ou se exalta, ela só pode estar histérica ou com o demônio no corpo, isso é evidenciado através das cenas que se passam na Igreja.
Elas não têm opinião própria, não podem falar o que pensam ou fazer o que querem. É sempre pensando na aprovação de um homem. Enquanto isso, eles vivem alegremente, fazendo o que bem entendem porque não têm essa preocupação em aceitação e aprovação.
Ao expor os males do patriarcado, “Medusa” também deixa uma mensagem de sororidade. Ao se unirem, as meninas percebem que podem mais e que tem o poder de lutar e mudar sua realidade.
O grito, presente nas cenas finais, é força, é um chamado para lutar. É o despertar para a batalha e é quando, finalmente, as mulheres se libertam e saem espalhando seu grito, sua força, dispostas a acordar outras mulheres que ainda estão dormentes. Sem medo de julgamentos ou de rejeição, a histeria toma conta e as mulheres estão, enfim, livres e têm suas vozes ouvidas.
A escolha do nome da produção não foi por acaso. O rosto da Medusa é adotado como um dos símbolos da luta feminista e um filme com uma mensagem e protagonismo feminino não forte, não poderia ser intitulado de outra maneira.