Foto: M4FEL

A noite desta segunda-feira, dia da visibilidade trans, foi duplamente especial para Maria Moraes, atriz travesti de Manaus (AM). No palco do Festival Olhar do Norte, ela levou o prêmio pela atuação em Maria, filme que leva seu nome no título e carrega uma narrativa densa sobre sua trajetória nas ruas da capital amazonense. O curta também levou o principal troféu da noite, o prêmio de melhor filme da região, além de outros prêmios em fóruns diversos de audiovisual no Brasil.

“O filme narra a minha estratégia de resistência à morte cívica que desumaniza o meu corpo travesti na cidade de Manaus, a partir dos olhares de Elen Linth e Riane Nascimento que acompanham meu agir e refletir enquanto performer, artista de rua e ativista dos direitos humanos”, conta Maria. Ela é uma das mulheres trans entrevistadas pela Mídia NINJA por ocasião do Dia Nacional da Visibilidade Trans.

Importante símbolo de visibilidade, o prêmio como qualquer outro é um passo para o reconhecimento de artistas transexuais que encontram na arte e cultura uma forma de empregabilidade e valorização da identidade.

Foto: M4FEL

“As premiações dos festivais que participou Maria reconhecem nossos olhares e poéticas, na possibilidade de representações humanas de pessoas trans e travestis, ampliando o repertório de corpos, identidades, desejos e afetos, não apenas como entretenimento ou arte; mas também como uma ferramenta para análise social e histórica”, complementa a atriz.

Confira outras pontos de vista em conversa com Maria.

Esse é o mês da visibilidade trans. Você acha que temos o que celebrar?

Celebrar é por fim ao silêncio, é incomodar e questionar a norma naquilo que ela tenta nos calar. Se há essa cultura misógina e transfóbica que cria desigualdade a pessoas trans e travestis, celebrar nossas vivências e resistências são nossas armas para denunciar e combater a violência, os preconceitos e discriminação contra mulheres e pessoas LGBTQ.

Hoje nós ainda lutamos por uma lei de identidade de gênero que reconheça nossas vivências e identidades na busca pelo reconhecimento da nossa cidadania. A partir disso a gente constrói um processo de humanização dessas vivências e de outras que ainda estão por vir.

Nos últimos anos vimos um debate crescer nas mídias sobre a transexualidade por meio de algumas representações na dramaturgia, como em filmes e novelas. Como você vê essa representação nas mídias tradicionais?

Por que não escolher uma artista travesti para o papel? Cansei de ser objeto de pesquisa em trabalhos acadêmicos, em processos de outros artistas, em que minha narrativa e existência é utilizada para dar vida a personagens, que trazem em suas necessidades dramáticas o questionamento a norma, a resistência à transfobia, o processo de mudança física do corpo trans, somente com a justificativa que falar da temática fortalece nossas lutas, quando visibilidade não me garante o direito à vida.

Tornamos reféns de representações caricatas, preconceituosas, fetichizadas e desumanas que fazem o desserviço de estigmatizar nossa comunidade, o que também justifica sermos o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo.

Eu digo não ao transfake e assumo o posicionamento político junto ao MONART – Movimento de Artistas Trans em prol das vidas trans contra a violência simbólica, psicológica e física que a invisibilidade de nossos protagonismos nas mídias causam. Representatividade é para mim, tornar visível meu olhar, corpo e arte, na possibilidade de me reconhecer e ser reconhecida.

Você concorda com políticas de ações afirmativas para pessoas trans nas universidades? Por quê?

Nós precisamos de ações afirmativas para ter somente o reconhecimento da situação de vulnerabilidade social, e isso se justifica pela transfobia estrutural, processo que nega a cidadania e se evidencia pelos assassinatos, exclusão, negação de direitos fundamentais, como saúde, moradia, educação. Mas ter acesso não é garantir nossa permanência. Ainda é preciso pensar que a pessoa trans aprovada venha a ter condições financeiras e psicológicas de permanecer no curso, sendo que ela provavelmente é a primeira a fazer isso e precisa conscientizar a universidade de sua realidade social e como aquele espaço precisa agir e refletir uma sociedade que não reproduza isso.

Muitos tem falado que este será o ano das mulheres, a militância nunca esteve tão forte e ações como o 8M prometem ser um marco no mundo inteiro. Contudo, ainda há um nicho feminista que deslegitima a participação das mulheres trans nessa militância. Você concorda com isso? Você acredita que a participação das mulheres travestis e transexuais são fundamentais ao feminismo?

Sem mulheres trans e travesti não há feminismo. Questionamos a naturalização do que é ser mulher, mesmo que se negue essas nossas mulheridades, nós lutamos contra os mesmos discursos que nos reduzem a genitais, pela emancipação de nossos corpos e direitos reprodutivos. Há todos os motivos para lutarmos juntas.

Já vimos na mídia tradicional neste último ano uma reportagem que aliava a transexualidade a uma doença, considerando o distúrbio de “nascer no corpo errado”. O que você acha dessa leitura?

Nossos corpos não são universais, para onde eu vá não consigo esconder, e nem quero, que sou travesti e mulher negra, porque isto está marcado em mim, eu vejo e reflito essas identidades. Precisamos naturalizar a representação do corpo e nudez das pessoas trans, apenas somos corpos que vestem roupas e que podem ter formas diversas. Nossos corpos não estão errados, só não estão sendo representados, e quando são, não por pessoas trans, minha história fica visível, a partir de minha luta política para existir, mas sou invisibilizada pela protagonismo do corpo de outros sujeitos.