ALAIN JOCARD – AFP

Texto publicado originalmente no site do Instituto Fome Zero

O Instituto Fome Zero tem como objetivo apoiar políticas de combate à fome e a todas as formas de desnutrição, contribuindo para torná-las uma das maiores prioridades do Brasil e da comunidade internacional.

Para que isso seja possível, o Instituto Fome Zero atua de acordo com cinco objetivos estratégicos:

1. Promover o direito à alimentação adequada e seu arcabouço legal com o estabelecimento de um marco regulatório para introduzir mecanismos e medidas concretas para garantir a proteção social individual que erradiquem a fome e a desnutrição.

2. Apoiar a formulação de políticas de combate à fome e à desnutrição com adoção de políticas e mecanismos de erradicação da fome e da desnutrição, gerenciados e conduzidos de forma permanente e com a participação de toda a sociedade.

3. Envolver as três esferas federativas – governo central, estados e municípios – na formulação de políticas exitosas de erradicação da fome e da desnutrição no Brasil, a partir de iniciativas locais e posteriormente replicando-as em nível regional e nacional. Também é preciso criar mecanismos para tornar as cidades capazes de tornar seus sistemas alimentares mais sustentáveis.

4. Adotar o desenvolvimento local com o nexo entre agricultura familiar – novas tecnologias – produção sustentável para encurtar o caminho entre produção e consumo. Isso envolve investir na agricultura familiar e em sua produção agroecológica para atender à demanda direta dos consumidores dos centros urbanos, com o auxílio de novas tecnologias de distribuição.

5. Utilizar a cooperação Sul-Sul e o compartilhamento de experiências no mundo pós-Covid-19, disseminando a países, organizações e instituições experiências bem-sucedidas para erradicar a fome e a desnutrição.

Impacto das mudanças climáticas na segurança alimentar

As mudanças climáticas já estão causando impacto significativo na produção agropecuária em muitas partes do mundo devido a eventos extremos, como tempestades tropicais, ciclones, tsunamis, ondas de calor, secas e escassez de água. No entanto, se o aquecimento global não for interrompido, o impacto será maior, resultando em consequências drásticas para a disponibilidade de alimentos e nutrição adequada.

A análise recentemente publicada do Grupo de Trabalho I1 do IPCC mostra que, mesmo nos melhores cenários de aquecimento, a insegurança alimentar deve aumentar ainda mais. Os danos que estamos causando no planeta deixarão ainda mais pessoas com fome crônica. Por isso, a ambição de garantir que todos no mundo possam ter acesso a uma dieta saudável e nutritiva se torna ainda mais remota.

Esse colapso em nossos sistemas alimentares continua a afetar os mais vulneráveis de forma mais aguda, com as pessoas que vivem em áreas de conflito, aqueles que sofrem com a pobreza extrema e grupos marginalizados arcando com o maior impacto devido ao aumento dos preços dos alimentos e a escassez de suprimentos exacerbados pelas mudanças climáticas, conflitos e interrupções econômicas. Ao mesmo tempo, estão limitando o acesso a alimentos nutritivos, mesmo em nações ricas e entre populações relativamente privilegiadas.

A edição de 2023 do relatório sobre o Estado da Segurança Alimentar e Nutricional (SOFI) revela que entre 691 e 783 milhões de pessoas passaram fome em 2022, com uma média de 735 milhões de pessoas2. Isso mostra que mais de 122 milhões de pessoas passaram fome no mundo desde 2019 devido à pandemia e repetidos choques climáticos e conflitos. Da mesma forma, mais de 3,1 bilhões de pessoas no mundo – ou 42% – não conseguiram pagar por uma dieta saudável em 2021, o que representa um aumento de 134 milhões de pessoas em comparação com 2019. Além disso, bilhões convivem com as consequências das deficiências de micronutrientes, que enfraquecem o sistema imunológico e causam doenças evitáveis. Não podemos suportar mais desafios e constrangimentos aos sistemas alimentares que já não são adequados à sua finalidade.

Projeta-se que quase 600 milhões de pessoas estarão cronicamente subnutridas em 2030. São cerca de 119 milhões a mais em relação a um cenário em que nem a pandemia nem a guerra na Ucrânia tivessem ocorrido. Como tem sido afirmado por muitas agências da ONU (FAO, IFAD, UNICEF, OMS e PMA): “se as tendências permanecerem como estão, o ODS 2 de erradicar a fome até 2030 não será alcançado”.

Somando-se à incapacidade de muitas pessoas não conseguirem comprar alimentos devido à renda insuficiente, há desafios que incluem uma maior disponibilidade de alimentos mais baratos, acessíveis, pré-preparados e rápidos, muitas vezes densos em energia e ricos em gorduras saturadas, açúcares e/ou sal, que podem contribuir para a desnutrição; disponibilidade insuficiente de hortaliças e frutas para atender às necessidades diárias de dietas saudáveis para todos; exclusão de pequenos agricultores das cadeias formais de valor; e perda de terras e capital natural devido à expansão urbana. A prevalência de excesso de peso infantil corre o risco de aumentar com o problema emergente do alto consumo de alimentos ultra processados e alimentos fora do domicílio nos centros urbanos, que está se espalhando cada vez mais para as áreas periurbanas e rurais.

Impacto das mudanças climáticas na produção de alimentos e nutrição

As mudanças climáticas tornarão algumas áreas contemporâneas de produção de alimentos impróprias. As atuais áreas agrícolas e pecuárias globais se tornarão cada vez mais inadequadas do ponto de vista climático em um cenário de altas emissões (por exemplo, 10% até 2050 e mais de 30% até 2100). Extremos climáticos crescentes e potencialmente concomitantes aumentarão periodicamente as perdas nas principais regiões produtoras de alimentos.

Um estudo de modelagem estima que a remoção completa de polinizadores poderia reduzir a oferta global de frutas em 23%, vegetais em 16% e nozes e sementes em 22%, levando a aumentos significativos na população deficiente em nutrientes e doenças relacionadas à desnutrição (Smith et al., 2015)3, destacando a importância desse serviço ecossistêmico para a saúde humana.

O aumento das concentrações de CO2 diminuirá a densidade de nutrientes em algumas culturas. O CO2 elevado reduz alguns elementos nutricionais importantes, como proteína, ferro, zinco e algumas vitaminas nos grãos, frutas ou hortaliças, em graus variados, dependendo das espécies e cultivares (Mattos et al., 2014; Myers et al., 2014; Dong et al., 2018; Scheelbeek et al., 2018; Zhu et al., 2018a; Jin et al., 2019; Ujiie et al., 2019)1. Do mesmo modo, níveis mais elevados de CO2 podem levar a uma redução de 5-10% em uma ampla gama de minerais e nutrientes (Loladze, 2014)1.

Projeta-se que as culturas básicas diminuam as concentrações de proteínas e minerais em 5-15% e as vitaminas do complexo B em até 30% quando as concentrações de COduplicam acima do nível pré-industrial (Ebi e Loladze, 2019; Praia et al., 2019; Smith e Myers, 2018)1. Sem mudanças nas dietas e contabilizando os declínios de nutrientes nas culturas básicas, projeta-se que um adicional de 175 milhões de pessoas poderiam se tornar deficientes em zinco e outras 122 milhões de pessoas, deficientes em proteínas (Smith e Myers, 20184).

O relatório do IPCC sugere que temperaturas elevadas e eventos climáticos extremos, como secas, ondas de calor e inundações, prejudicarão a agricultura no Brasil se as temperaturas continuarem a subir. A produção de milho pode diminuir em 71% até o final do século no Cerrado se as emissões continuarem a aumentar, ou 38% mesmo se as emissões forem reduzidas. O estresse térmico também pode reduzir o crescimento animal, a produção de leite e ovos e aumentar a mortalidade animal. Se as emissões continuarem a aumentar, reporta o IPCC, o gado e as aves enfrentarão estresse térmico durante a maior parte ou todo o ano em grande parte do país, enquanto os suínos enfrentarão estresse térmico durante a maior parte ou todo o ano em algumas partes do país. As mudanças climáticas também prejudicarão a pesca e a aquicultura no Brasil. Se as emissões forem altas, a produção de peixes cairá 36% em 2050-2070 em comparação com 2030-2050, enquanto a produção de crustáceos e mariscos será praticamente extinta, diminuindo 97% no mesmo período. A Amazônia Ocidental enfrenta uma seca severa este ano, que está causando um aumento significativo de incêndios e ameaças à navegação, ao acesso à água potável e à vida aquática, com milhares de peixes morrendo. O Governo do Amazonas decretou estado de emergência em 55 municípios por seis meses devido à estiagem. Para amenizar seus efeitos, medidas como compra de produtos sem licitação, abertura de poços artesianos e apoio a pequenos agricultores foram implementadas. Essa situação evidencia a interconexão dos fenômenos climáticos globais e regionais, mostrando a importância de abordar a questão das emissões de gases de efeito estufa e da proteção ambiental de forma integrada.

O Instituto Fome Zero reconhece plenamente as consequências das emissões de gases de efeito estufa (GEE) para os sistemas alimentares e sua relevância para erradicar a fome e a desnutrição. A variabilidade climática e os eventos climáticos extremos cada vez mais frequentes e intensos afetarão a estabilidade na disponibilidade, acesso e consumo dos alimentos. Isso provavelmente acontecerá devido a mudanças na sazonalidade, flutuações na produtividade dos ecossistemas, aumento dos riscos e redução da previsibilidade na oferta de alimentos. Mesmo que fiquemos no limite de 1,5°C de aumento da temperatura, os sistemas de produção agropecuária terão que passar por profundas transformações.

O apoio dos governos à alimentação e à agricultura é de quase 630 milhões de dólares por ano no mundo. No entanto, uma parte considerável desse apoio distorce os preços de mercado, é ambientalmente destrutivo e prejudica os pequenos produtores e os povos indígenas, ao mesmo tempo em que não oferece dietas saudáveis às crianças e a outras pessoas que mais precisam delas. Portanto, as políticas que apoiam as transições de produção agropecuária devem implementar as seguintes medidas: revisão de subsídios para remover incentivos perversos, regulação e certificação, compras públicas verdes, investimento em sistemas alimentares sustentáveis, apoio à capacitação, acesso a prêmios de seguro e pagamentos por serviços ecossistêmicos e proteção social, entre outros.

Produção agrícola e influência da perda e desperdício de alimentos nas mudanças climáticas

As emissões de GEE provenientes de perdas e resíduos alimentares (PRA) têm duas fontes principais: as emissões provenientes da produção (incluindo armazenamento, processamento, distribuição e consumo) de alimentos perdidos ou desperdiçados e as emissões provenientes da gestão de PRA (isto é, a gestão de resíduos). Os GEE resultantes de alimentos estragados e desperdiçados são responsáveis por cerca de metade de todas as emissões globais do sistema alimentar, de acordo com estudo recente5. “Precisamos de ações coletivas que ampliem os esforços para reduzir a perda e o desperdício de alimentos e, ao mesmo tempo, reduzir as emissões de GEE”, conforme o diretor-geral da FAO, QU Dongyu6.

De acordo com o relatório State of Food and Agriculture (2019) da FAO, cerca de 14% dos alimentos do mundo (avaliados em US$ 400 bilhões por ano) continuam a ser perdidos depois de colhidos e antes de chegarem à rede varejista; o Relatório do Índice de Desperdício de Alimentos do PNUMA mostra que mais 17% dos nossos alimentos acabam sendo desperdiçados no varejo e pelos consumidores, especialmente nas residências.

As PRAs também são responsáveis por 8-10% das emissões de GEE, contribuindo para um clima instável e eventos climáticos extremos, como secas e inundações. Se as PRAs fossem reduzidas pela metade, uma redução de cerca de um quarto das emissões totais de GEE do sistema alimentar global poderia ser alcançada. Priorizar a redução das PRAs é, portanto, fundamental para a transição rumo a sistemas agroalimentares sustentáveis que melhorem o uso eficiente dos recursos naturais, diminuam seu impacto no clima e garantam a segurança alimentar e nutricional.

Impacto da produção agroecológica e orgânica na nutrição

Estudos comparativos entre alimentos cultivados em sistemas de produção convencionais e alternativos de base ecológica têm demonstrado efeitos benéficos destes últimos sobre a saúde, uma vez que apresentam qualidade nutricional superior7. Culturas orgânicas de alface, rúcula e chicória apresentaram maior atividade antioxidante devido ao teor de compostos fenólicos totais. O aumento da ingestão de polifenóis e antioxidantes tem sido associado a um risco reduzido de doenças crônicas, como doenças cardiovasculares e neurodegenerativas, e certos tipos de câncer.

Da mesma forma, com manga e melão, respectivamente, o sistema de cultivo de frutas orgânicas favoreceu o aumento da qualidade pós-colheita, originando frutos com maiores teores de açúcares, carotenoides totais, ácido ascórbico e folatos. Maçãs produzidas de forma orgânica apresentaram maiores teores de K, Ca, Mg, Na, Mn do que as de cultivo convencional. Alface, pimentão e tomate orgânicos são ricos em Cr, Fe, K, Mg ou Na. Por sua vez, quanto maior o teor de Na, maior o teor de açúcares e compostos bioativos nos produtos frescos8.

Ao analisar trigo, cevada, batata, cenoura e cebola cultivados nos sistemas orgânico e convencional, verificou-se que os teores de polifenóis, flavanol e luteína foram maiores nos alimentos orgânicos. Esses compostos representam uma classe de metabólitos que têm sido associados a propriedades antioxidantes e atividades neuroprotetoras, cardioprotetoras e quimiopreventivas, além de reduzir a incidência de câncer, doenças gastrointestinais, hepáticas, aterosclerose, obesidade e alergias.

Ao investigar cultivares de soja, Bohn et al (2014)7 verificaram que a soja orgânica, em comparação com as convencionais, continha maiores teores de zinco; açúcares, como glicose, frutose, sacarose e maltose do que a soja convencional; e significativamente mais proteínas totais e aminoácidos, como lisina, alanina, asparagina, serina e glutamina. Além disso, a soja orgânica apresentou menores teores de ácidos graxos saturados, como o palmítico, cujo consumo deve ser o menor possível no contexto de dietas nutricionalmente adequadas.

Abordagens agroecológicas para adaptação/resiliência e mitigação de sistemas alimentares às mudanças climáticas

A agricultura, a silvicultura e outros usos da terra respondem por 18,4% das emissões globais, enquanto apenas a pecuária, o estrume e os solos agrícolas representam mais de 10% das emissões globais de GEE9. Embora a agricultura seja responsável por uma parte significativa das emissões globais de gases de efeito estufa, ela também sofre consequências diretas das mudanças climáticas. Assim, o desafio da agricultura no contexto das mudanças climáticas é duplo, tanto para reduzir as emissões quanto para se adaptar a um clima em mudança e mais variável.

Embora algumas medidas de mitigação possam ter impactos negativos na capacidade adaptativa dos sistemas agrícolas, a maioria das categorias de opções de adaptação às mudanças climáticas tem impactos positivos na mitigação. São elas: 1) medidas que reduzam a erosão do solo; 2) medidas que reduzam o uso de fertilizantes nitrogenados (N) e a lixiviação de N e fósforo no solo; 3) medidas para conservar a saúde e a umidade do solo (como elevação do nível de carbono); 4) aumento da diversidade nas rotações de culturas e uso de sistemas integrados de produção (lavoura-pecuária, floresta); 5) modificação do microclima para reduzir os extremos de temperatura e fornecer abrigo; e 6) adoção e implementação de práticas sustentáveis para evitar o cultivo de novas terras (menos desmatamento). Essas medidas de adaptação irão, se aplicadas corretamente, reduzir as emissões de gases do efeito de estufa, melhorando a eficiência da utilização do N assim como o armazenamento de carbono no solo10.

Levantamentos de campo e resultados relatados na literatura sugerem que os agroecossistemas são mais resilientes quando inseridos em uma matriz de paisagem complexa, utilizando germoplasma local adaptado a sistemas de cultivo diversificados e manejados com solos ricos em matéria orgânica e técnicas de conservação e coleta de água.

De acordo com a FAO: “a agroecologia é uma abordagem holística e integrada que aplica simultaneamente conceitos e princípios ecológicos e sociais ao planejamento e gestão de sistemas agrícolas e alimentares sustentáveis. Busca otimizar as interações entre plantas, animais, humanos e meio ambiente, ao mesmo tempo em que aborda a necessidade de sistemas alimentares socialmente equitativos, nos quais as pessoas possam exercer a escolha sobre o que comem e como e onde os alimentos são produzidos.”11

Ao minimizar ou eliminar o uso de agroquímicos, a agroecologia reduz os efeitos negativos da agropecuária na saúde humana e ambiental; ao relocalizar dietas, a agroecologia pode ajudar a ancorar dietas sustentáveis e saudáveis; ao manter um equilíbrio funcional, os sistemas agroecológicos são mais capazes de resistir à ocorrência de pragas e doenças que se autorregulam. Além disso, mantendo um equilíbrio funcional, os sistemas agroecológicos são mais resilientes às mudanças climáticas ao mesmo tempo em que mitigam as emissões de GEE.

A agroecologia capacita agricultores familiares, incluindo mulheres, jovens agricultores e povos indígenas, uma vez que privilegia saberes tradicionais e práticas locais. Os agricultores são considerados mais do que apenas produtores: seu engajamento na criação de conhecimento, inovações e adaptações, e seus valores culturais e sociais estão intrinsecamente ligados ao tipo de alimento que produzem.

A agroecologia ajuda a proteger, restaurar e melhorar a agricultura e os sistemas alimentares contra impactos climáticos e estressores. A FAO afirma que há evidências robustas de que a agroecologia aumenta a resiliência climática ao se basear em princípios ecológicos, como biodiversidade e solos saudáveis, bem como em aspectos sociais, como compartilhamento de conhecimento e capacitação de produtores. A Organização recomenda que a agroecologia seja reconhecida como uma estratégia viável de adaptação às mudanças climáticas e que as barreiras à ampliação da adoção de práticas agroecológicas sejam superadas por meio de uma melhor educação sobre seus benefícios.

Com o intuito de facilitar a transição dos sistemas alimentares, a FAO adotou o Marco dos 10 Elementos da Agroecologia e implementou uma plataforma em agroecologia (Agroecology Knowledge Hub) com o objetivo de fortalecer políticas públicas, disseminar conhecimento, evidências de desenvolvimento científico, dados estatísticos, práticas, metodologias e ferramentas que apoiem práticas agroecológicas. Dentre essas iniciativas, destaca-se a “Avaliação de Desempenho da Agroecologia” para medir o funcionamento multidimensional de sistemas agroecológicos nas dimensões econômica, social e ambiental, gerando uma base global de evidências. A Ferramenta de Avaliação de Desempenho em Agroecologia (TAPE) já foi testada em sistemas de produção de mais de 30 países, como Argentina, Peru, México, China, Itália, França, Mali e Quênia.

A floresta amazônica e a produção de alimentos

A floresta amazônica possui uma área de mais de 7 milhões de km2, abrigando cerca de 28 milhões de pessoas e 10% da biodiversidade mundial. É uma das últimas florestas maciças do planeta, tendo importância primordial para o equilíbrio dos ciclos biogeoquímicos em escala global. Sessenta por cento de seu território está localizado no Brasil e o desmatamento já afeta cerca de 20% do bioma, causando apreensão em todo o mundo à medida que se aproxima das previsões de “ponto de não retorno” do ecossistema12. O Brasil adotou estratégias para conter o desmatamento por meio da implementação do Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia Legal; esse Plano aplicou medidas de comando e controle, reduzindo as taxas de desmatamento em 80% no período 2006-2012. No entanto, tem sido reconhecido por pesquisadores, até mesmo pelo próprio governo, que esse tipo de medida chegou ao seu limite, exigindo novas ações de apoio às atividades produtivas sustentáveis para complementar e aprofundar o combate ao desmatamento.

Os sistemas de produção realizados pelos povos tradicionais amazônicos são extensivos e baseados na biodiversidade da floresta. As grandes áreas de coleta compensam a baixa densidade das espécies exploradas. Do ponto de vista socioambiental, essa característica é positiva, pois, ao utilizar grandes áreas sem causar impactos negativos na cobertura vegetal, esses sistemas agrícolas colaboram para a manutenção da provisão de serviços ecossistêmicos que auxiliam na regulação dos regimes hídrico e de temperatura em escala regional, nacional e global. Além disso, por serem produtos silvestres de ocorrência natural, são livres de agrotóxicos ou qualquer insumo químico, sendo fonte de renda para melhorar a subsistência dos povos da floresta13. Por outro lado, a natureza extensiva de tais sistemas de produção impõe desafios econômicos. O longo caminho percorrido pelos produtores para a coleta é uma das razões pelas quais os custos de produção do extrativismo são, na maioria dos casos, sensivelmente mais altos do que os de produtos equivalentes em sistemas agrícolas intensivos. O fato de parte considerável das comunidades extrativistas da Amazônia viver em locais de difícil acesso, longe de qualquer centro urbano e com infraestrutura de transporte precária, representa outro obstáculo. Tais locais são visitados apenas por alguns atravessadores, que gerenciam a comercialização da produção das famílias. Em tais circunstâncias, esses intermediários têm grande influência sobre a definição dos preços locais dos produtos, às vezes remunerando apenas uma pequena parte do preço de mercado pago nos centros urbanos14.

Apesar de enfrentarem dificuldades logísticas e de competitividade, mas gerarem serviços ambientais que vão além do produto em si, tanto para os consumidores diretos quanto para toda a população, os chamados produtos da sociobiodiversidade são importantes para a geração de renda e conservação da natureza. Exemplos desses produtos são castanha-do-pará, óleo e farinha de babaçu e açaí, entre muitos outros naturalmente muito abundantes na floresta – as chamadas espécies hiperdominantes.

As empresas privadas devem envidar esforços para incorporar esses produtos em suas linhas de produção, compartilhando benefícios com as populações locais. Os governos devem desenvolver e adotar políticas públicas que mitiguem a diferença de preços entre os produtos convencionais, que são baratos, mas causam grandes impactos ambientais, e os produtos florestais, que são mais caros, mas geram externalidades positivas ao manter a floresta viva. O apoio governamental a essas cadeias produtivas amazônicas deve integrar as estratégias das políticas ambiental e a econômica.

Chamada a ações para reduzir o impacto das mudanças climáticas nos sistemas alimentares

É de extrema importância reconhecer a importância de melhorar a pegada ecológica e de carbono dos sistemas alimentares como um princípio operacional para a transição para Sistemas Alimentares Sustentáveis. Dessa forma, é imprescindível incentivar o consumo adequado em harmonia com práticas agrícolas e outras práticas de produção de alimentos que mantenham ou valorizem os recursos naturais e apoiem a integração da ciência transdisciplinar e do conhecimento local (inclusive indígena) em processos participativos de inovação que transformem os sistemas alimentares.

Existem muitas medidas para abordar as transições rumo a sistemas alimentares diversificados e resilientes que podem ser consideradas pelos Estados Nacionais e Organizações Intergovernamentais, abrangendo pecuária mista, peixes, culturas agrícolas e agroflorestas que preservam e aumentam a biodiversidade, bem como a base de recursos naturais, tais como15:

  1. reorientar os subsídios e incentivos que atualmente beneficiam práticas insustentáveis, a fim de apoiar a transição para Sistemas Alimentares Sustentáveis (SFS);
  2. apoiar a utilização do planeamento de gestão territorial participativo e inclusivo para identificar e promover práticas localmente sustentáveis e proteger os recursos naturais comuns a diferentes níveis (paisagem e comunidade, nacional, regional e global);
  3. adaptar os acordos internacionais e as regulamentações nacionais de recursos genéticos e propriedade intelectual, a fim de facilitar o acesso dos agricultores a recursos genéticos diversificados, tradicionais e adaptados localmente, bem como o intercâmbio de sementes entre agricultores;
  4. reforçar a regulamentação sobre a utilização de produtos químicos nocivos para a saúde humana e o meio ambiente na agricultura e nos sistemas alimentares, promovendo alternativas à sua utilização e recompensando as práticas que produzam sem eles;
  5. construir capital social e organismos públicos inclusivos em escala territorial, de modo a que os processos políticos possam ser implementados em uma escala onde a oferta e os impactos entre os principais serviços ecossistêmicos (aprovisionamento, regulamentação, apoio e cultura) possam ser geridos;
  6. promover a educação e a sensibilização, a rotulagem e a certificação adequadas dos alimentos; apoio aos consumidores de baixa renda e ao uso de políticas de compras públicas, incluindo programas de alimentação escolar e aquisição de alimentos pelos governos para os pobres; e
  7. incentivar coleta de dados a nível nacional, documentação dos aprendizados e o compartilhamento de informações em todos os níveis, a fim de facilitar a adoção de abordagens agroecológicas e outras possibilidades inovadoras que facilitem a transição para SFS.

Considerando a situação atual e as perspectivas de aquecimento global que afetam a segurança alimentar e nutricional, o Instituto Fome Zero declara seu total apoio à agroecologia para agricultores familiares como uma das escolhas mais adequadas visando à transformação sustentável, resiliente ao clima e de baixo carbono da agricultura e convida a comunidade internacional a implementar as seguintes ações:

1. Adotar a agroecologia como principal abordagem de produção para diversificar a produção de alimentos, permitir a adaptação e resiliência às mudanças climáticas, e ao mesmo tempo fornecer alimentos seguros, sustentáveis e nutritivos para erradicar a fome e a desnutrição. A agroecologia é uma disciplina científica, uma prática agrícola ou um movimento político ou social que pode facilitar a diversificação da produção oferecendo uma variedade de alimentos saudáveis locais aos consumidores, diminuindo as perdas pós-colheita.

2. Desenvolver e implementar políticas públicas que apoiem a transição para uma produção agroecológica sustentável e resiliente, respeitando o conhecimento, a cultura e os valores locais dos agricultores. Tais políticas devem gerar medidas e mecanismos que beneficiem os agricultores familiares, particularmente durante o processo de transição, provendo incentivos, subsídios e proteção social. Além disso, as políticas públicas de agroecologia devem ser integradas a outras políticas que enfrentam as desigualdades e que proporcionam proteção social para o acesso à alimentação e nutrição. É importante destacar que os agricultores devem participar de todo o processo de formulação, implementação e avaliação dos resultados dessas políticas.

3. Criar e expandir mercados de rua e circuitos curtos de comercialização para facilitar o acesso a alimentos saudáveis pela população local a preços acessíveis, reduzindo o consumo de alimentos ultraprocessados, ricos em calorias, aditivos, aromatizantes e conservantes, mas pobres em valor nutricional. Essa iniciativa deve ser estruturada e implementada pelos governos locais com o engajamento de produtores e consumidores. Os governos também devem promover mercados agroecológicos, dando prioridade a alimentos saudáveis nas compras públicas (por exemplo, em programas de alimentação escolar e fornecimento de alimentos aos pobres).

4. Investir em pesquisa científica e inovação para desenvolver e avaliar tecnologias e práticas agroecológicas. Práticas atuais conhecidas como compostagem e manejo saudável do solo, manejo da água, controle biológico de pragas e doenças, bancos de sementes de variedades nativas adaptadas a cada realidade, consórcio e rotação de culturas, sistemas agroflorestais e silvipastoris e integração de culturas com raças animais locais, entre outras, devem ser testadas, validadas e expandidas para diferentes agroecossistemas e condições sociais. Deve-se assegurar que o conhecimento tradicional dos agricultores aliado à inovação nas práticas e ao uso sustentável de tecnologias estejam no cerne de um sistema agroecológico de cultivo.

5. Promover o acesso dos agricultores familiares aos sistemas digitais de informação para facilitar a adoção e expansão da agroecologia e apoiar a rastreabilidade dos produtos. Os sistemas digitais visam apoiar as relações com o mercado de forma justa e facilitar o acesso dos agricultores familiares a serviços de consultoria agrícola (por exemplo, informações sobre mudanças climáticas, tecnologias para adaptação climática, práticas agroecológicas e informações georreferenciadas) e a serviços financeiros e seguros. Os governos devem priorizar investimentos e implementar projetos que melhorem a conectividade com a internet nas áreas rurais; garantir acessibilidade para celulares, sensores e drones; e aumentar as habilidades dos agricultores familiares, particularmente das mulheres e jovens, no uso de tais dispositivos. Atenção especial deve ser dada à participação dos agricultores durante o desenvolvimento e validação inicial de tais sistemas de informação e aplicativos de telefone celular.

Referências

1 IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change), 2022. Impacts, Adaptation and Vulnerability – Summary for Policy Makers. Working Group II contribution to the 6th Assessment Report of the IPCC. WMO, UNEP. 3,676 p.

FAO, IFAD, UNICEF, WFP and WHO, 2023. The State of Food Security and Nutrition in the World 2023. Urbanization, agrifood systems transformation and healthy diets across the rural–urban continuum. Rome, FAO.

Smith, M. R., Singh, G. M., Mozaffarian, D., Myers, S. S., 2015. Effects of decreases of animal pollinators on human nutrition and global health: a modelling analysis. (https://www.thelancet.com/pdfs/journals/lancet/PIIS0140-6736(15)61085-6.pdf)

Smith, M.R., Myers, S.S., 2018. Impact of anthropogenic CO2 emissions on global human nutrition. Nature Climate Change n. 8, p. 834–839.

Zhu, J., Luo, Z., Sun, T. et al., 2023. Cradle-to-grave emissions from food loss and waste represent half of total greenhouse gas emissions from food systems. Nat Food. n. 4, p. 247–256. https://doi.org/10.1038/s43016-023-00710-3

FAO, 2022. https://www.fao.org/newsroom/detail/FAO-UNEP-agriculture-environment-food-loss-waste-day-2022/en

7 Pereira, N., Franceschini, S., Priore, S., 2020. Food quality according to the production system and its relationship with food and nutritional security: a systematic review. Saúde Soc. São Paulo, v.29, n.4.

Rahman, S.M.E., Mele, M.A., Lee, Y.-T., Islam, M.Z., 2021. Consumer preference, quality, and safety of organic and conventional fresh fruits, vegetables, and cereals. Foods, 10, 105.

9 Our World in Data, 2020. https://ourworldindata.org/ghg-emissions-by-sector

10 Smith, P. and Olesen, J. E., 2010. Synergies between the mitigation of, and adaptation to, climate change in agriculture. Journal of Agricultural Science, n. 148, p. 543–552.

11 FAO. Agroecology Knowledge Hub. https://www.fao.org/agroecology/overview/en/

12 Lovejoy, T. E., Nobre, C., 2019. Amazon tipping point: Last change for action. Science Advances, v. 5, n. 12.

13 Villas Bôas, A., Junqueira, R. P., Salazar, M., Postigo, A., 2018. As reservas extrativistas da Terra do Meio: uma experiência de desenvolvimento alternativo para a Amazônia. Desenvolvimento e Meio Ambiente, 48.

14 Allegretti, Mary Helena (2002). A construção social de políticas ambientais: Chico Mendes e o movimento dos seringueiros. Tese de Doutorado. Centro de Desenvolvimento Sustentável, UNB. Brasília.

15 HLPE, 2019. Agroecological and other innovative approaches for sustainable agriculture and food systems that enhance food security and nutrition. A report by the High-Level Panel of Experts on Food Security and Nutrition of the Committee on World Food Security, Rome 2019.

Baixe aqui, em Português (formato pdf), o “Manifesto do IFZ | Reduzindo o impacto das mudanças climáticas na segurança alimentar e nutricional

Baixe aqui, em Inglês (formato pdf), o “IFZ Manifesto | Lowering the impact of climate change on food security and nutrition