Foto: Reprodução / Botafogo

Por Ben Hur Samuel

“No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente.”

É dessa forma que Mário de Andrade, escritor inserido no movimento modernista brasileiro, começou e categorizou seu magnum opus “Macunaíma, um herói sem caráter”. Ao ser lançado, implicou diversos debates que outrora não eram questionados pela população brasileira. Isso inclui como as questões raciais e a pluralidade da sociedade brasileira, além das consequências da chegada do capitalismo no mundo como forte permeadora do mundo hodierno.

A estória de Macunaíma, particularmente, tem uma similitude com a vida de um dos jogadores mais brilhantes, mais folclóricos e porventura mais controversos de todo o futebol mundial. Esta igura, em 1962, ao vencer a Copa do Mundo de futebol, dedicou a Taça Jules Rimet para a então revelação da música popular brasileira Elza Soares. E ainda em 1962, no auge de sua carreira futebolística, foi o ator principal de um dos documentários mais prolíficos do movimento cinematográfico do Cinema Novo dirigido pelo, até então desconhecido, Joaquim Pedro de Andrade. Diretor que viria a ser, coincidentemente ou não, o responsável pela adaptação de Macunaíma para os cinemas em 1969, no auge da Tropicália.

Estamos falando de Mané Garrincha, que com todas suas polêmicas controversamente entrelaçadas à sua vida profissional, devido ao seu consumo alcoólico concomitante à prática do futebol, não seria o mesmo sem sua genialidade e ironicamente sua inocência lúdica, relativamente reminiscentes da obra “Macunaíma”.

A obra biográfica “estrela solitária” narra precisamente todos os pontos da vida de Mané Garrincha desde a história de vida de seus pais até sua morte, seu forte alcoolismo, por muito tempo por ele banalizado, apontando para a sua característica simplicidade em sua relação com o mundo.

Assim como Macunaíma, Mané Garrincha também tinha dificuldades de interação social e de alguma forma, possuía uma familiaridade com a vida na mata desde sua infância, onde costumava correr por todos os lados como se pertencesse àquele mundo. Algo que nitidamente é parecido com o personagem, que além de permanecer na mata, optava por aquele mundo sem qualquer tipo de problema, mas uma vez retirado de seu habitat “natural” e inserido no mundo urbano, importante referência ao êxodo rural, desenvolve certas dificuldades para se encontrar no novo ambiente.

Outra referência notável entre o jogador e o personagem de Mário de Andrade pode ser proferida na Copa do Mundo em 1962. Naquele momento, Mané era reputado por suas habilidades extraordinárias, mas desacreditado por sua falta de maturidade esportiva. Contudo, resolveu se entregar completamente ao profissionalismo e se tornou a estrela daquela Copa, sendo campeão em dribles e eleito unanimemente o melhor jogador daquele torneio. Macunaíma, por sua vez, na obra citada, só retorna para sua civilização depois de derrotar o Monstro capitalista Venceslau Pietro Pietra e implora por sua amada Ci que dormia lentamente na Ursa Maior no final do livro.

Copa 1962. Foto: Arquivo / CBF

Na vida real fora do ambiente ficcional, Mané Garrincha foi categorizado por ações disruptivas e por decisões errôneas de sua própria vida, mas seria um exagero dizer que nosso Macunaíma futebolístico não foi relevante para o nosso futebol moderno. Ademais, neste ano de Copa do Mundo, é válido parafrasear uma das cenas mais marcantes do livro “Macunaíma” que ao se deparar com com a imensidão da Cidade e do êxodo rural, notou que:

“Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina!.”

Ali percebeu que o mundo era dominado pelos gigantes de corporações e não pelos trabalhadores responsáveis pelas construções de estádios, enfrentando situações desumanas, para no fim, não poderem levar suas famílias para um jogo da Copa do Mundo.

Quando Mário de Andrade categorizou Macunaíma como um herói sem caráter, ele insinuou que ele não era bom nem ruim, mas errôneo como qualquer ser humano involuntariamente.

Ele era feio mas se tornou um príncipe lindo, ele não era preto, nem branco e nem indigena – mas ele era brasileiro.

Outrossim, ele não era forte, mas era habilidoso. Não era rico mas sabia sobreviver através de suas peraltices e por fim, ele era inocente, mas assim como Mané Garrincha, sabia dar a volta por cima como um bom brasileiro.

“Muita saúva e pouca saúde, os males do Brasil são.”

Texto produzido em cobertura colaborativa da NINJA Esporte Clube