“Semente da Vida” se debruça sobre a relação entre parentalidade cristã e diversidade, a fim de interromper o ciclo de violência e rejeição frente ao avanço das ofensivas contra as comunidades LGBTQIAPN+

86,8% dos lares brasileiros se autodenominam como cristãos, segundo o Censo de 2010 (Foto: Reprodução | Northfoto)

A primeira conversa sincera com a família sobre sua verdadeira sexualidade ou gênero pode ser um processo doloroso não apenas para pessoas das comunidades LGBTQIAPN+, mas também para suas mães, pais, familiares e cuidadores. A fim de tentar compreender melhor as angústias parentais de famílias cristãs, impulsionadas pelo discurso religioso tradicional, hegemônico e fundamentalista, que muitas vezes pode resultar em conflitos e violência, o livro “Semente de vida: Rejeição e aceitação de filhos/as/es LGBTI+ em lares cristãos” reúne relatos e análises de especialistas na busca de alternativas e caminhos para interromper o ciclo da rejeição às diversidades sexual e de gênero e agir em favor da propagação da vida.

“Na época da escola, uns meninos jogaram uma porta em cima de mim e eu quebrei a perna. Minha mãe dizia que eu sofria isso por causa do meu ‘jeitinho de viado’. Eu tinha 8 anos.”

“Eu achava que não soube criar ele ‘como homem’. Eu pensava: ‘será que foi porque deixei ele dormir com as irmãs no mesmo quarto?’ ‘Como eu nunca vi ele experimentando os batons delas?’. Cheguei ao cúmulo de achar que, por eu ter sido mãe solteira e ter feito sexo antes do casamento, estava pagando por alguma coisa.”

Relatos como estes, que fazem parte da obra literária, são comuns na vida de muitas famílias brasileiras, principalmente tendo em vista que, de acordo com o Censo de 2010, 86,8% dos lares brasileiros se autodenominam como cristãos. Sendo o cristianismo majoritário no Brasil, a dicotomia entre os valores construídos dentro da família e a expectativa frustrada promove os primeiros conflitos geradores da rejeição, preconceito e violência que irão permear a vida dessa pessoa em toda a sua existência.

Foi tentando buscar a raiz deste sofrimento, que o comunicador social e ativista LGBTI+, Gut Simon se uniu à jornalista e clériga Ana Ester, doutora em Ciências da Religião, ao geógrafo e reverendo Bob Luiz Botelho, pesquisador em diversidade e cofundador do Evangélicxs Pela Diversidade, e à mestre em Linguística e doutora em Educação pela UFMG, Tania Afonso, para analisar a influência do discurso fundamentalista religioso nas famílias e suas implicações – políticas, sociais e culturais – para toda a sociedade, ouvindo a opinião de profissionais de diversas áreas, além de pais, mães e cuidadores de pessoas das comunidades LGBTQIAPN+.

“Falaremos sobre as noites de choro de pais, mães e pessoas cuidadoras que descobrem a identidade de seus filhos/as/es. Falaremos daquele momento em que, escondidas no secreto do banheiro trancado, em posse do seu celular, digitam no navegador as palavras ‘meu filho é gay e agora, Deus?’ acompanhado de um nó na garganta por se confrontar com as palavras escritas por suas próprias mãos.” diz um trecho do livro.

Em uma sociedade hétero-cis-normativa, na qual heterossexualidade e cisgeneridade são compulsoriamente impostas, o fato de nenhum projeto de parentalidade, seja cristão ou não, desejar ou se preparar para um filho/a/e LGBTI+, faz com que muitas vezes, os sonhos de mães, pais, familiares e cuidadores para o futuro dos filhos/as/es desabam após a descoberta.

Diante da quebra de expectativas de que os filhos/as/es se encaixem, sejam felizes, não sofram discriminação e – especialmente para as famílias cristãs – que não estejam em pecado e condenadas ao inferno, a rejeição acaba sendo um impulso desesperado e natural, tendo em vista que esta resposta faz parte de um ciclo constantemente alimentado.

“As igrejas conservadoras tradicionais trabalham a questão LGBTI+ sempre apontando para a direção da perdição, então os pais estão movidos por esse medo, angústia e não aceitação”, escreve a Reverenda Dayse Porto, uma das colaboradoras da obra.

Lançado pela editora Saber Criativo, o livro que conta com a parceria de instituições religiosas e de defesa dos direitos das comunidades LGBTQIAPN+, ainda reúne a participação de autores convidades com artigos inéditos, para de acordo com os autores, fortalecer as alianças entre o campo progressista e o campo progressista religioso, afim de interromper o ciclo da rejeição às diversidades sexual e de gênero, e agir em favor da propagação da vida.

Desde o início de 2023 ao menos 69 projetos de lei antitrans foram apresentados nas esferas federal, estadual ou municipal, onde a luta entre a Frente Parlamentar Evangélica e manutenção dos direitos das pessoas LGBTs segue em disputa diária no Legislativo.

Semente de Vida é, portanto, uma obra atualíssima e necessária a todas as pessoas – independente de orientações sexuais e crenças religiosas. “Trata-se de um convite a quem não aguenta mais ver crianças e jovens sofrerem pelo que são. Um chamado para que possamos assumir que o que melhor expressa a imagem de Deus, é a diversidade”, afirma Gut Simon, comunicador social, idealizador e co-autor do livro.