Após dois anos sem festejos devido a pandemia, a lavagem retorna com a tradicional caminhada de fé, sincretismo e resistência negra

Baianas lavando a escadaria da Igreja do Senhor do Bonfim

Por Rafael Lucas

Celebração secular, a Lavagem do Bonfim reúne quase dois milhões de pessoas nas ruas de Salvador todos os anos. Considerada uma das maiores festas populares de sincretismo religioso do Brasil, o seu início é datado no século XVIII com rituais de devoção ao Senhor Bom Jesus.

Já nesse período, as manifestações contavam com a participação maciça de descendentes de africanos escravizados, adeptos do candomblé, que adicionaram a festa elementos como tambores, danças, comidas, cerimônias e reverências à Oxalá, ligando-o à figura do Senhor do Bonfim.

Lavagem do Bonfim no ano de 1950. Foto: Voltaire Fraga

Esse sincretismo era a alternativa usada como resistência por parte dos adeptos das religiões de matriz africana, no sentido de manter seus cultos em um período de profunda perseguição religiosa.

Essas práticas incomodavam profundamente as autoridades católicas da época. No final do século XIX, a rejeição por parte dessas lideranças se intensificou. Para eles, aquelas manifestações eram consideradas “blasfêmia”, “bruxaria”, “paganismo” e composta por pessoas de “ínfima classe”.

Então, em 1889 uma portaria foi publicada proibindo a lavagem das igrejas em dias de festas e pedindo a anuência das autoridades civis para não permitir o acesso dessas pessoas aos templos católicos. Determinações baseadas em práticas racistas e que perduram até os dias de hoje com recorrentes casos de intolerância e racismo religioso.

Lavagem no interior da Igreja do Bonfim no ano de 1950. Foto: Voltaire Fraga

No entanto, a proibição não teve êxito e não cumpriu sua finalidade. A resistência característica dos povos africanos encontrou um meio de driblar as proibições e manter as celebrações à Oxalá.

Oxalá é o orixá associado à criação do mundo e da espécie humana. Simboliza a paz, é o pai maior nas nações das religiões de tradição africana. É calmo, sereno, pacificador; é o criador e, portanto, é respeitado por todos os outros Orixás

Com isso, as mulheres negras deixaram de lavar o interior da Igreja, mas continuaram a realizar o cortejo munidas de suas vassouras, de flores e vasos com água de cheiro para lavar as escadarias da Colina Sagrada. Ritual que segue acontecendo toda 2° quinta-feira de janeiro.

Atualmente, o cortejo que percorre cerca de 8 km da cidade baixa da capital do Axé, é iniciado com a saída das baianas e, posteriormente, acompanhado por diversas manifestações culturais, grupos musicais, movimentos sociais e blocos de carnaval como IIê Aiyê e Filhos de Ghandy.

Se a festa da tradicional lavagem do Senhor do Bonfim resiste até os dias atuais com tamanho alcance e mobilização popular, com certeza isso se deve também às estratégias ancestrais de resiliência da comunidade negra e do povo de Santo.

Fonte: Festa do Bonfim – A maior manifestação religiosa popular da Bahia. (Material disponibilizado pelo Iphan e Ministério da Cultura).