Aos fins de semana, passear pelos mesmos trajetos, se permitir jantar no restaurante mais requintado de sempre e lavar as roupas na lavanderia perto de casa. As repetições insistentes dessas jornadas são dias perfeitos?

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Por Ricardo Carvalho

Uma rotina meticulosamente organizada, do despertar até a hora de dormir. Acordar antes do sol nascer, dobrar a roupa de cama perfeitamente, recolher o colchão, molhar as plantas na hora certa, se arrumar, partir para o trabalho, terminar todas as tarefas de forma exemplar, jantar no restaurante de sempre, voltar para casa ouvindo fitas cassetes de clássicos estadunidenses e ler um livro antes de dormir. Aos fins de semana, passear pelos mesmos trajetos, se permitir jantar no restaurante mais requintado de sempre e lavar as roupas na lavanderia perto de casa. As repetições insistentes dessas jornadas são dias perfeitos?

Atenção: Por ser um filme pautado essencialmente na trama e roteiro, essa crítica contém Spoilers.

Indo na contramão da nossa contemporaneidade do burnout onde o tempo é curto, o bombardeio de conteúdo é incessante e absolutamente tudo é para já, Hirayama considera que sim, esses são seus dias perfeitos. Interpretado de forma excepcional por Koji Yakusho, que venceu o prêmio de Melhor Ator no Festival de Cinema de Cannes de 2023 pelo papel, Hirayama parece um homem comum, que esqueceu do mundo e foi por ele esquecido, mas que guarda uma profundidade tocante.

Metódico, meticuloso, silencioso e até mal humorado na maior parte do tempo, Hirayama é um funcionário da The Tokyo Toilet, empresa que administra e limpa os banheiros públicos de Tokyo, a capital do Japão. De cara, o filme já traz um tema muito relevante, a invisibilidade de algumas profissões essenciais para a manutenção e convívio em sociedade. Em muitas passagens do filme, o protagonista é totalmente ignorado por transeuntes e usuários dos banheiros que ele mesmo limpa. Muitos até mesmo ignoram a placa de interditado e entram no recinto, ocupados demais com suas rotinas para reparar no funcionário.

Hirayama, contudo, não parece se importar e o filme faz isso não de forma a prestigiar essa invisibilidade, pelo contrário, acrescenta uma camada de beleza em parceria íntima com o protagonista. Ao mesmo tempo que demonstra a grosseria e a impessoalidade da sociedade frente a ele, evidenciando o desleixo com seu ofício, é nesses momentos de pausa da sua rotina tão planejada que Hirayama repara em pequenos detalhes que, caso fosse seguir à risca os seus dias perfeitos, poderiam passar despercebidos.

Esses pequenos respiros mostram a beleza do mundo que o cerca, tanto natural quanto urbano. Aqui, a fotografia de Franz Lustig faz um trabalho belíssimo de captar do ponto de vista do protagonista essas belezas. Uma árvore em meio ao parque urbano que deixa pequenos feixes do sol (fenômeno nomeado na língua japonesa de komorebi) desenhar um refúgio aos caos urbano, ou o reflexo da marquise metalizada de um dos banheiros que gera quase um caleidoscópio, tudo é fruto do olhar apurado da realidade, caraterística marcante em Franz por ser um diretor de fotografia que trabalhou, em grande parte de sua vida, com documentários. Aliás, seu trabalho vai muito além do olhar de Hirayama, Franz traz muita vida à cidade de Tokyo, do alvorecer até a calada da noite, botando em xeque a grandeza cinzenta do título de maior cidade do mundo capitalista.

A inconveniência de quem atrapalha o trabalho de Hirayama não é a única força a quebrar sua rotina. Entre outras interrupções, o muitas vezes chato parceiro de trabalho Takashi (Tokio Emoto) é o grande motor de quebra dos tais dias perfeitos do protagonista. Falante, insistente, relaxado e desesperado, Takashi leva Hirayama por caminhos completamente diferentes do que o personagem principal planeja. O que inicialmente é motivo de frustração para o protagonista, logo se torna capaz de revelar uma camada de sensibilidade, empatia e carinho pelo outro, mostrando que Hirayama, mesmo fugindo do mundo, ainda é atravessado positivamente por ele. O personagem principal se permite até mesmo rir de situações cômicas de Takashi e sorrir de gestos empáticos ao ver o colega lidar com um amigo com síndrome de Down.

Essa sensibilidade começa a dar muitos sentidos ao que circunda Hirayama. Dono de uma vasta coleção de livros e fitas cassetes, é evidente que por trás de toda a rotina tida por muitos como monótona há um homem culto, antenado nas artes do mundo inteiro, afinal ele lê artistas de diversos lugares do globo e ouve muitas músicas de fora do Japão. Entre os livros, o protagonista lê ‘Árvores’, de Aya Koda, que sugere seu apreço pelos feixes entre os galhos (komorebi) e, mais importante ainda, ‘Palmeiras Selvagens’ de William Faulkner. Este último trata de duas histórias interligadas e, quando sua sobrinha aparece de surpresa em sua casa, tudo faz ainda mais sentido: há um passado do qual Hirayama foge, uma outra história, interligada. O roteiro de Wim Wenders e Takuma Takasaki não dá ponto sem nó, tudo extremamente amarrado e costurado para os dias de Hirayama serem realmente perfeitos.

A sobrinha Niko (Arisa Nakano) traz a quebra definitiva em sua rotina, levando Hirayama a abandonar quase completamente seus planos diários e reviver dias de família há muito tempo esquecidos. Nessa parte do filme, roteiro, fotografia, música e elenco se misturam para dar o tom perfeito e arrematar a narrativa. Enquanto vive uma Tokyo diferente com sua sobrinha, brincando, sorrindo ainda mais do que nunca em imagens mais saturadas e quentes, o filme revela que os dias perfeitos, na verdade, são quando Hirayama não consegue controlar nada. Assim como a vida, que acontece essencialmente no imprevisível, ele se permite, de fato, viver, mesmo que às custas de tudo que cultiva com tanta (e exagerada) meticulosidade.

Entretanto, as manias e a eterna fuga do que fez tanto mal não deixam Hirayama viver isso por muito tempo. Tudo fica ainda mais evidente quando ele é confrontado pela sua irmã. Ela chega em um carro de luxo, com motorista particular, e questiona com desprezo o bairro e a entrada da casa de Hirayama, além de falar sobre um parente (parece ser o pai) internado, revelando o luto do personagem principal e nos dando dicas do que ele tanto foge e de tudo que ele abriu mão por essa tão desejada paz na rotina invisível. Assim que Niko e sua mãe partem, vemos, pela primeira vez, Hirayama desabar aos prantos, ou seja por trás da casca, do silêncio e da rotina, há um ser humano complexo, vivo, com suas alegrias e tristezas, perdas e ganhos, que tem muitos sentimentos na superfície, mas também no interior.

Para questionar definitivamente os dias perfeitos que Hirayama tanto busca, ele também é confrontado com a visita de Tomoyama (Tomokazu Miura) ex-marido de Mama por quem o protagonista alimenta uma paixão secreta. Uma última vez refletindo o que o que personagem principal traz de maior peso dramático, Hirayama foge ao ver os dois abraçados, assim como fugiu da família, da doença do provável pai e dos dias realmente perfeitos com a sobrinha. Na fuga, Hirayama é alcançado por Tomoyama e o que parece ser um conflito iminente, se torna uma última vez a lembrança de que é no imprevisível que a vida acontece, é nas surpresas da rotina que os dias se tornam perfeitos. Os dois homens dividem uma noite de confidências, desabafo e brincadeiras, uma noite perfeita.

O nascer do sol em Tokyo, retratado repetidas vezes no filme com planos gerais que mostram a pequenez de todos nós frente à vida, traz um novo dia para Hirayama. E novamente ele executa todo o ritual perfeitamente, contudo, o sol quente sobre seu rosto enquanto dirige para o trabalho revela que algo mudou, ou está para mudar. Nas contradições entre o antes e o novo, entre a fuga e culpa e o carinho que ainda tem pela família, o protagonista desaba entre sorrisos e choros, em um plano longo e fechado em seu rosto, alçando a atuação de Koji Yakusho a uma das melhores dos últimos anos. Afinal, como a principal música do filme (Perfect Day de Lou Reed) diz: “Apenas um dia perfeito, Você me faz esquecer de mim, Eu pensei que eu era outra pessoa, Uma pessoa boa”.