Foto feita em outubro de 2017, no contexto da Renca, projeto do Michel Temer que queria retirar 50% do território Wajãpi por Victor Moriyama

Por Andressa Santa Cruz e Bruno Walter Caporrino

Os Wajãpi são um grupo falante da língua Wajãpi, tronco tupi-guarani que vem evitando os contatos com os não-índios desde o século XVII. Mesmo assim, foram pressionados e contatados de maneira definitiva: As primeiras informações sobre a existência desse povo foram repassadas para a Fundação Nacional do Índio (FUNAI) pelos garimpeiros e pela empresa de mineração ICOMI. Era 1973, a Funai foi acionada para “pacificar” os nativos e assim “liberar” a área para as obras da Perimetral Norte, a BR-210. Quando chegaram, os agentes encontraram um povo devastado pelo sarampo, reduzidos em 150 indivíduos.

Para se recuperar das epidemias, os Wajãpi foram levados para o entorno de postos de assistencialismo da Funai e os garimpeiros aproveitaram sua ausência no restante do território para expandir as expedições: desde o princípio o Estado têm trabalhado para fragilizar as modalidades de ocupação do território e sedentarizar os Wajãpi para liberar a região para a exploração desordenada. Em 1976, as obras da BR-210 foram interrompidas depois de cortar o território Wajãpi ao meio com 30 quilômetros de estrada, que facilitou a circulação dos invasores.

Com a demora da Funai para reagir às ocupações, lideranças Wajãpi chefiaram pequenos grupos e conseguiram expulsar todos invasores entre as décadas de 80 e 90, enquanto enviavam propostas de demarcação para o Governo Federal. Após 16 anos empenhados em demarcar a Terra Indígena por si mesmos, com apoio da GIZ e do Programa Wajãpi, conseguiram a homologação da Terra Indígena Wajãpi, “se tornando assim um dos primeiros povos no Brasil a fazer a autodemarcação de seu território, oficializado em 1996.”

Fotos feitas em outubro de 2017, no contexto da Renca, projeto do Michel Temer que queria retirar 50% do território Wajãpi por Victor Moriyama

Fotos feitas em outubro de 2017, no contexto da Renca, projeto do Michel Temer que queria retirar 50% do território Wajãpi por Victor Moriyama

Prevendo o risco de novas invasões mesmo com a demarcação regulamentada, foi criado em 1997, no âmbito do Programa Wajãpi, o Programa de Vigilância e Fiscalização da TI Wajãpi que funciona até hoje. Essas expedições regulares descentralizaram a população que ainda vivia no entorno dos postos e permitiram a criação de novas aldeias em pontos estratégicos, e ocupando os limites da TI, os Wajãpi fazem vigilância ao mesmo tempo em que cuidam da reduzida porção de seu território que os brancos lhes deixaram.

Assim, eles vêm desde sempre fortalecendo sua organização social ao tempo em que garantem a fiscalização de suas terras. No mesmo ano em que os Wajãpi demarcaram seu território, o ex-senador de Roraima Romero Jucá propôs o Projeto de Lei nº 1.610 em prol da “exploração e o aproveitamento de recursos minerais em terras indígenas”. Anos antes, Jucá foi presidente da Funai e integrante do Conselho Superior de Minas do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).

Integrante da bancada ruralista no Senado por 24 anos, atualmente Jucá é investigado pela Procuradoria-Geral da República suspeito de beneficiar a maior empresa mineradora do Brasil, a Vale S/A, conhecida pelos crimes em Mariana e Brumadinho. Em 2012, a filha de Jucá, que é sócia da Boa Vista Mineração, solicitou autorização para extrair ouro em terras indígenas, no mesmo ano em que o PL 1.610/96 idealizado pelo seu pai voltava a ser pautado no Congresso Nacional.

Mais uma vez, os Wajãpi se acautelaram e organizaram: provocaram uma reunião no Ministério Público Federal com a Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), o ICMBio, a Funai e a Secretaria do Meio Ambiente do Amapá, onde lançaram uma carta assinada pelas três associações Wajãpi (Apina, Awatac e Apiwata) afirmando que “há um consenso total entre todos os Wajãpi de que não querem atividade mineradora em suas terras ou seu entorno”, exigindo a anulação de todas as solicitações minerarias que envolviam seu território. Na época, outras organizações endossaram a demanda dos Wajãpi e se juntaram a eles em uma Ação Civil Pública pela anulação de todos os requerimentos que incidiam nas terras indígenas do Amapá e norte do Pará. Essa ação civil pública foi julgada procedente pela Justiça Federal e o DNPM foi obrigado a anular os registros: os Wajãpi mostraram a força de sua organização e sua exemplar cidadania no zelo pela floresta que, segundo a Constituição Federal, no Artigo 225, é bem de todos. A Lei Maior determina ainda que seja dever de todos, cidadãos e poder público, zelar pelo meio ambiente equilibrado e saudável, algo que os Wajãpi vêm fazendo desde sempre.

Foto feita em outubro de 2017, no contexto da Renca, projeto do Michel Temer que queria retirar 50% do território Wajãpi por Victor Moriyama

Os Wajãpi foram também o primeiro povo indígena da América Latina a elaborar o próprio Protocolo de Consulta e Consentimento: “nós resolvemos fazer este documento porque muitas vezes vemos que o governo quer fazer coisas para os Wajãpi, mas não pergunta para nós o que é que estamos precisando e querendo”, afirma o parágrafo de abertura do documento que foi publicado em 2014 e é amparado pela Convenção 169 sobre os Povos Indígenas e Tribais, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), lei no Brasil desde 2004 (Decreto Presidencial nº 5051). Mas mesmo com o pioneirismo e com as antecipações aos ataques endossados pelo Estado, em 2017 o então presidente Michel Temer (MDB) tentou revogar a Reserva Nacional do Cobre e Associados (Renca) criada em 1984 para salvaguardar a soberania nacional, uma vez que a região no extremo norte brasileiro abriga minérios estratégicos para a indústria bélica brasileira.

Para agradecer à bancada ruralista pela absolvição nas denúncias de corrupção, Temer enviou seu Ministro de Minas e Energia, Fernando Coelho Filho, ao Canadá para anunciar o leilão da Renca à empresas privadas de mineração três meses antes de comunicar a nação brasileira e os próprios indígenas que habitam a região, como os Wajãpi. Graças às pressões nas redes sociais e a mobilização internacional, a revogação anunciada no Diário Oficial foi barrada.

Apesar da reincidência de ataques e investidas do governo e frentes econômicas, a invasão ostensiva e violenta à Terra Indígena Wajãpi relatada pelos nativos em julho de 2019 foi a mais violenta em 30 anos de demarcação indígena no Amapá.

Foto feita em outubro de 2017, no contexto da Renca, projeto do Michel Temer que queria retirar 50% do território Wajãpi por Victor Moriyama

Desde que o novo governo assumiu, aumentou em 150% o registro de invasões em territórios indígenas, principalmente na Amazônia.

Segundo a própria Organização das Nações Unidas, que acompanha o caso, as declarações do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro estimulam esse aumento na invasão e na violência, o que pode e deve ser levado em conta em um necessário processo para responsabilizar o Estado pelo genocídio que tais medidas anunciam contra os povos indígenas.

Para o antropólogo Bruno Walter Caporrino, que também testemunhou algumas invasões durante o período em que foi assessor do Programa Wajãpi (2009-16), “os órgãos públicos responsáveis em proteger os direitos indígenas deveriam apoiar os Wajãpi, mas estão negando as invasões e, assim, desrespeitam a própria função institucional de garantir os processos legais.” Ele se refere às invasões em julho de 2019 na mesma semana em que o cacique Emyra Wakãpi foi encontrado morto a facadas. Mesmo com o histórico de ataques, com os relatos das lideranças e com o assassinato de um ancião, a investigação da Polícia Federal não aponta para a invasão da Terra Indígena Wajãpi.

O Conselho das Aldeias Wajãpi Apina, instituição representativa e deliberativa legítima dos Wajãpi lançou notas oficiais onde reforçam que debateram muito antes de acionar as forças de segurança e que só fizeram isso depois de constatar que a morte da liderança Emyra Wajãpi.

Em nota, o Apina afirma ainda que apesar de todo seu empenho em conduzir os agentes da Polícia Federal aos locais onde havia provas de invasão, estes se recusaram a avançar ao mesmo tempo em que, sem fazer perícia alguma, alegaram publicamente, sem provas (porque não geraram prova alguma) que não houve invasão. Segundo Caporrino, “ao mesmo tempo em que a Polícia Federal e a Funai se recusam a ir ao local coletar provas, alegam ter provas de que não houve invasão, o que revela um preocupante grau de agressão aos direitos humanos, ao devido processo legal e um alinhamento das forças de segurança às propostas do presidente de liberar as terras indígenas a qualquer custo: doa a quem doer”.

__

Referência bibliográfica:
Gallois, Dominique Tilkin
Terra Indígena Wajãpi : da demarcação às experiências de gestão territorial / Dominique Tilkin Gallois. — São Paulo : Iepé, 2011. — (Coleção ensaios ; 1)