Por Juliana Gusman

O Festival Internacional É Tudo Verdade reuniu, em sua mostra competitiva, sete documentários brasileiros de longa-metragem que reafirmam a qualidade, a inventividade e a veia política do nosso cinema de não-ficção. As diferentes estratégias narrativas reiteram a fertilidade deste campo: há filmes de pendor observativo, outros de tratamentos profundamente pessoais. Há filmes de mulheres, sobre mulheres, e alguns sobre grandes personalidades da cultura popular. Cinco deles elegem uma personagem central, outros preferem discorrer sobre a seiva das multidões. Seja como for, são obras que nos proporcionam experiências cinematográficas da maior qualidade. A seguir, breves considerações:

Sinfonia de um Homem Comum – José Joffily

 O diretor José Joffily partilha nome e geração com o protagonista de Sinfonia de um Homem Comum, José Maurício Bustani, pianista e diplomata de absoluta entrega e integridade em ambas as funções. Bustani também foi o primeiro diretor-geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas (OPAQ), de 1997 a 2002, quando foi afastado do cargo pelas tramoias do governo norte-americano, pouco interessado em permitir que a instituição firmasse acordos com o Iraque. Caso o país do Médio Oriente aderisse à OPAQ e, consequentemente, permitisse a inspeção de armas químicas no seu território, a retórica estadunidense que usava a ameaça (sabidamente falsa) como pretexto de ataque cairia por terra. Quem caiu foi Bustani, e o resto é história.

A sinfonia de um homem comum. Foto via GloboPlay

O documentário reconstitui a complexa urdidura dos acontecimentos de duas décadas atrás, mas cuja relevância é inegável para compreendermos os conflitos globais mais pujantes do nosso tempo. O filme relembra (ou introduz) às audiências um exemplo da fragilidade da autoproclamada maior democracia do mundo. O material de arquivo é vastíssimo, mérito não só do realizador, mas do próprio personagem, exímio colecionador de memórias. Às fotos, gravações e aos recortes de jornal articula-se uma narração em voz over sempre didática, uma gentileza com os espectadores menos familiarizados com o caso. As entrevistas elevam a tônica de denúncia da obra, quando não nos aproximam afetuosamente das figuras combativas que conseguem reunir.

Duas cenas memoráveis: a emoção de Bustani quando relê, e revive, o discurso proferido após seu desligamento da OPAQ (eis o poder do arquivo); e o lamentável bombardeio do Iraque. As armas parecem fogos de artifício que celebram a resignação alheia diante da morte de um povo. Com o Nocturne No.20 em C Menor de Chopin ao fundo, tocado pelo próprio Bustani, não há como não imaginar que as coisas poderiam (poderiam?) ser diferentes.

Quando falta o ar – Ana Petta e Helena Petta

Como outras narrativas produzidas nos últimos anos, Quando falta o ar, das irmãs Ana e Helena Petta, é um filme que tem como mote central a pandemia de Covid-19. Como outras produções que integraram a programação do evento, é um filme áspero. Trata-se, afinal, de uma obra movida por desejos de denúncia. Busca-se evidenciar o desamparo do povo brasileiro diante de duas das mais agudas crises da nossa história recente: a sanitária, evidentemente, e a política, não menos aniquiladora. O letreiro final surge para não deixar dúvidas sobre culpabilidades. Nunca é demais reiterar que o Governo Federal foi mais letal que o vírus. Morreu-se de morte matada, não podemos esquecer.

Quando falta o ar

Apesar de não se esquivar da dureza sensorial das enfermidades, Quando falta o ar também nos cura com pequenas doses de esperança. O trabalho de profissionais do SUS como Andreia Beatriz, Rafaela Pacheco, Ho Yeh Li  e Eli Hywyxy é elevado pela abordagem observativa e atenta das realizadoras, que acompanham sempre de perto as suas batalhas. Estamos diante de um bonito tributo às médicas de família e comunidade que tiveram que viver a pandemia nas condições mais adversas.

O documentário honra a vocação e o conhecimento dessas mulheres para lidar com gente. Os planos são longos para se preservar o tempo da escuta, ferramenta essencial à boa medicina. Acolhe-se toda sorte de aflições. Não há hierarquias no sofrimento.

Quando falta o ar nos lembra que  SUS é uma riqueza, outra coisa a não se perder de vista.

Pele – Marcos Pimentel

A princípio, Pele, de Marcos Pimentel, pode parecer uma espécie de trégua na programação do festival, entre filmes de temáticas tão tortuosas. O documentário propõe uma etnografia visual dos muros pichados e grafitados do Rio, de São Paulo e BH, onde a arte urbana consegue arrebatar mesmo os transeuntes mais habituados com essas paisagens.

Os enquadramentos da câmera reorganizam a economia do olhar. Convoca-se outro tipo de interação com as tatuagens do concreto, que modificam os sentidos sobre o espaço coletivo. Aqui, é tudo sobre a força da imagem: o trabalho de som aguça sensibilidades para que possamos enxergar melhor.

Pele

Pimentel é um admirador da dança, como já sabemos pelo menos desde A Arquitetura do Corpo, de 2008. Não surpreende, portanto, o ritmo afiado da montagem de sua nova empreitada: em Pele, a cidade pulsa, ora contemplativa, ora energizada pelo povo que a ocupa.

Toma-se as ruas, porém, não somente para celebrar saudosos carnavais. As intervenções plásticas, reunidas na edição por tônicas comuns, vão das mais abstratas às mais politizadas, evidenciando que as capitais são, além de museus a céu aberto, campos de disputas. As urgências do nosso tempo vão sendo introduzidas pelas beiradas e pelos cantos, até acionarem, com melancolia, as lembranças das nossas dolorosas derrotas. Do ‘Fora Temer’ ao ‘Ele Não’, da ‘Vale Assassina’ à ‘Polícia que só mata pobre’, o cinema de Pimentel também nos recoloca diante dos nossos desafios.

Pixos e grafites são marcas da história. O filme bem que poderia se chamar “Cicatrizes”.

Adeus, Capitão – Vincent Carelli e Tita

O documentarista e indigenista Vincent Carelli apresenta a conclusão da trilogia iniciada com Corumbiara (2009) e Martírio (2017): Adeus, Capitão., codirigido e roteirizado por Tita. A despedida anunciada no título refere-se à partida de Krôhôkrenhum, líder dos povos gavião, no Pará. Neste filme, o luto parece ainda mais inclemente do que se pode supor. Longe das nossas racionalidades individualistas e embranquecidas, aqui a morte é coletiva. Ninguém vai embora sozinho.

O capitão parecia prever o desamparo iminente e, com alguma antecedência, começou a insistir na documentação audiovisual da cultura do seu povo, que batalhava para preservar. A câmera é um bom suporte para a oralidade, e Krôhôkrenhum não se furta a reencenar rituais para lastrear um futuro comum.

Adeus Capitão

Mas nem toda interação com “kupen” é boa: forja-se alianças com documentaristas (que bonito o poder do cinema), mas tenta-se lidar com os hábitos corrosivos dos brancos colonizadores. “O contato é sempre uma redenção”, já diria o capitão. Tradições são ameaçadas não somente pelas violências mais evidentes. As igrejas neopentecostais, o dinheiro, a arma de fogo, a própria língua portuguesa e até o cigarro branco que o líder gavião traga copiosamente na velhice vão minando de pouco em pouco formas de ser e estar no mundo já intimidadas.

Na longa trajetória deste monumento cinematográfico, reúne-se materiais filmados ao longo de cinco décadas. A narrativa amplifica a força do arquivo, capaz de atear ao passado fagulhas de tempos mais otimistas. Adeus, Capitão. é uma tentativa de trapacear fatalidades e segurar Krôhôkrenhum na terra.

Adeus, Capitão. é, também, uma declaração de amor e luta de um cineasta que, há muito, faz parte dessa história.

Rubens Gerchman: o rei do mau gosto – Pedro Rossi

Rubens Gerchman: o rei do mau gosto, de Pedro Rossi, não é um filme sobre um homem só. Apesar de se voltar para a pintura impura e irreverente do artista plástico, o documentário convoca, através de um vasto repertório arquivístico, a aura pulsante e criativa de uma geração.

Rubens Gerchman

Menos biográfico do que se pode presumir, O rei do mau gosto reúne depoimentos de contemporâneos do seu protagonista, que tentam reconstituir as motivações de uma produção artística que ambicionava explorar, nos anos 1960, as arestas do Brasil urbano. Espelhando as lacunas inarredáveis da memória, o filme maneja imagens do passado para exprimir imprecisões. Trata-se de uma narrativa visualmente fragmentada, embora nunca desconexa, como não deixa de ser qualquer processo de lembrança.

Em forma e em conteúdo, o Rubens Gerchman: o rei do mau gosto homenageia uma vanguarda que ousou desafiar parâmetros de criação mesmo nos tempos mais obscuros.

Belchior: apenas um coração selvagem –  Camilo Cavalcanti e Natália Dias

Belchior: apenas um coração selvagem, de Camilo Cavalcanti e Natália Dias soma-se a outros documentários que têm se voltado, com frequência, para grandes figuras da música popular. Aqui, entretanto, não se almeja edificar uma biografia definitiva. A obra dá conta de um Belchior mais público e mais midiático. Por meio da organização de um conjunto amplo de entrevistas e depoimentos gravados, o artista cearense volta à vida pelas próprias mãos.

O filme abocanha nossas disposições afetivas, já que não há como não embarcar no carisma e na irreverência de Belchior, que mistura doçura e deboche tanto para falar banalidades, quanto para endereçar os grandes enfrentamentos do seu tempo, com notáveis atribulações. Inconformado, mas sem perder a ternura, o cantor aspirava a uma música sobre o povo e para o povo, e não queria nada menos que mudar o mundo. “Belchior: apenas um coração selvagem” é uma obra que nos devolve às utopias.

Para além do protagonista, há de se mencionar duas figuras de primeira grandeza. Silvero Pereira, que em outras encarnações cinematográficas também incorporou esperanças emancipatórias, empresta corpo e alma para declamar as letras de um dos maiores compositores-poetas da nossa história. E Elis Regina, a pequena-gigante do Brasil, arrepia novas audiências com sua interpretação de Como Nossos Pais. E o filme não se apressa com o trecho: afinal, quem teria a coragem de interrompê-lo?

Eneida – Heloísa Passos

Recentemente, celebrou-se a maternidade em filmes como A Filha Perdida (Maggie Gyllenhaal) e Madres Paralelas (Pedro Almodóvar). Neles, há pouco espaço para afabilidades. Afinal, fala-se de mães solitárias em um mundo que confunde trabalho penoso com atos voluntários de carinho e cuidado. Não que falte ternura no ofício, mas carece o entendimento de que criar gente é de fato uma labuta. À sua maneira, Eneida é outro grande filme sobre mães em carne e osso.

A diretora Heloísa Passos tenta usar o cinema para aproximar sua mãe, personagem-título, da filha mais velha, Maísa, rompida com toda família há 22 anos por causa de contendas masculinas que ignoraram suas danosas reverberações. Eneida, hoje uma senhora octogenária, não abre mão da boa teimosia e vasculha, com ajuda de Heloísa, as brechas de um possível reencontro.

Eneida

Eneida é um filme difícil pois nos coloca diante de outra confrontação: aquele entre a severidade de uma filha aparentemente impassível aos apelos da protagonista, e o acolhimento absoluto que ela parece receber em suas outras relações. O distanciamento com Maísa nunca é completamente elucidado; na verdade, o documentário parece torná-lo ainda mais incompreensível. Se o cinema falha (por ora) como dispositivo de reconciliações, ele triunfa como uma ferramenta potente para despertar novos afetos. Não se conhece Eneida impunemente. Queremos abraçá-la também.

Filmado de perto e com aconchego, este drama pessoal esbarra em dilemas coletivos. Eneida revela uma vida de negociações complicadas com as expectativas em torno da feminilidade dominante. A obra, entretanto, nos lembra de que não é possível, tampouco desejável, respeitar parâmetros tão apequenados de comportamento e conduta.

“Eneida” é um grito de amor e liberdade às mulheres imperfeitas.

Juliana Gusman é jornalista, professora e pesquisadora, doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA-USP. É colaboradora do blog Piracema, da plataforma de cinema artesanal Cardume Curtas.