Horta urbana da UNEafro – Fotos: Fluxo Imagens, 2021

Texto de Aline Guarizo e Clayton Belchior

Neste artigo, Aline Guarizo, do Instituto Peregum, e Clayton Belchior, da Uneafro, refletem sobre os conceitos de soberania alimentar e racismo ambiental e contam sobre os impactos das hortas comunitárias nas periferias de São Paulo não só na produção de alimentos saudáveis, mas também no empoderamento da população local em relação a temas como agroecologia e combate ao racismo.

A alimentação é uma das necessidades básicas para a humanidade, no entanto, mais da metade da população brasileira (58,7%) está em situação de insegurança alimentar. A falta de acesso permanente a alimentos e a fome têm um impacto ainda maior na população negra, uma vez que atinge 65% dos lares comandados por pessoas pretas e pardas no país.

Os dados são do “II Inquérito Nacional da Insegurança Alimentar no Brasil no Contexto da Covid-19”, publicado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.

INSEGURANÇA ALIMENTAR

A insegurança alimentar tem suas raízes fincadas em um modelo de produção e comercialização de alimentos que tem como base a monocultura, a alta produtividade e o aumento do lucro em detrimento do combate à fome, da melhora da qualidade nutricional e da conservação ambiental.

Os riscos e os impactos ambientais deste modelo de produção e comercialização estão direcionados intencionalmente para as áreas onde moram ou estão expostas pessoas negras e pobres – o que conecta os problemas ecológicos às questões de raça, gênero e classe (ALIER, 2009). Tal situação agrava a vulnerabilidade dessas pessoas, que, consequentemente, encontram ainda mais dificuldades para superar tais condições.

RACISMO AMBIENTAL

Assim, o racismo ambiental compromete os meios de subsistência das comunidades tradicionais; desconsidera e inviabiliza os saberes, as práticas e as técnicas ancestrais de cultivo da terra e de preservação ambiental, presentes em culturas quilombolas, indígenas e também periféricas.

Isso ocorre uma vez “que os expelem de seus territórios e desorganizam suas culturas, seja empurrando-os para as favelas das periferias urbanas, seja forçando-os a conviver com um cotidiano de envenenamento e com a degradação de seus ambientes de vida” (HERCULANO e PACHECO, 2006).

É preciso considerar a sobreposição de fatores como raça, gênero e classe dentro do debate ambiental para a implementação de políticas públicas e de infraestrutura. Isso porque, as relações com o ambiente definem os aspectos da qualidade de vida do indivíduo e da comunidade, assim como da sustentabilidade.

JUVENTUDE NEGRA VIVA

É nesse contexto que, em 2021, o Instituto de Referência Negra Peregum e a UNEafro Brasil, com apoio da Fundação Rosa Luxemburgo, iniciaram o projeto Juventude Negra Viva. O objetivo foi incorporar temas como agroecologia e soberania alimentar às formações políticas, já realizadas pela UNEafro, como caminhos efetivos para o fortalecimento das comunidades e na resistência ao racismo, juntamente com a implantação de hortas urbanas agroecológicas.

O projeto foi iniciado durante a pandemia de COVID 19, que acentuou o cenário de crise ambiental e social no Brasil. A crise sanitária fez com que o movimento negro, presente em diversas regiões do país, criasse estratégias de fortalecimento junto à população negra, pobre e periférica, que historicamente encontra-se em situação de vulnerabilidade.

HORTAS COMUNITÁRIAS

A construção e articulação de hortas comunitárias pela UNEafro em territórios periféricos é um exemplo prático para repensar e criar alternativas possíveis e sustentáveis. Isso porque elas vão além da produção de comida saudável.

As hortas, nesses territórios, são espaços educadores e catalisadores. Elas promovem encontros e articulações; e empoderamento pessoal e coletivo sobre temas como agroecologia, soberania alimentar e combate ao racismo.

Por meio da produção de alimentos saudáveis e livres de agrotóxicos – ditos orgânicos -, são estimuladas discussões e reflexões sobre as diversas questões socioambientais do local; sobre o uso sustentável de recursos da natureza; sobre conceitos como soberania alimentar, racismo ambiental, justiça social entre outras.

Não apenas as vivências com a terra são alvo deste projeto, mas também o resgate e conhecimento da cultura popular e ancestral. Além do desenvolvimento das tecnologias limpas, do fomento ao trabalho coletivo e da conservação dos recursos naturais e da biodiversidade.

EDUCAÇÃO POPULAR

A educação popular é trabalhada de forma transversal no projeto e na implantação das hortas urbanas. Essa metodologia contribui não só com as ações socioeducativas – presente na formação política da UNEafro -, mas também na relação com as famílias e comunidade do entorno, por meio da participação criativa e da valorização do diálogo, onde cada pessoa envolvida ensina e aprende. Além disso, estimula a troca e contato entre as pessoas e a natureza.

Tudo isso é feito por intermédio de visitas, oficinas, rodas de conversa, debates, círculos de aprendizagem, manejo sustentável e outras formas desenvolvidas em todas as fases do projeto, buscando criar oportunidades de geração de renda, acesso à informação, a valorização do trabalho, o fortalecimento de vínculos do coletivo e a melhoria da qualidade de vida da população negra.

TERRITÓRIOS SUSTENTÁVEIS E ANTIRRACISTAS

Por fim, destaca-se o acesso pela população local a uma maior variedade de alimentos saudáveis e livres de agrotóxicos, diferente do que é oferecido em redes de supermercados – abastecidos por esse sistema devastador que lucra com a morte da população negra e com a degradação ambiental.

O conjunto das ações do projeto é um campo fértil de prática, tanto para o combate à insegurança alimentar e ao racismo ambiental, como para o conhecimento na garantia de direitos, para incidências em espaços de decisão e elaborações sociais na construção coletiva em busca de territórios sustentáveis e antirracistas.

Horta urbana da UNEafro – Fotos: Fluxo Imagens, 2021

REFERÊNCIAS

PENSSAN, Rede. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil (II VIGISAN): relatório final. Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar-PENSSAN. São Paulo, SP: Fundação Friedrich Ebert: Rede PENSSAN, 2022.

MARTÍNEZ ALIER, J. O Ecologismo dos Pobres: conflitos ambientais e linguagens de valoração. 1a Edição, Editora Contexto, 2009.

HERCULANO, Selene; PACHECO, Tânia. Racismo ambiental, o que é isso. Rio de Janeiro: Projeto Brasil Sustentável e Democrático: FASE, 2006.


SOBRE OS AUTORES

*Aline Guarizo: Educadora popular, gestora ambiental pela EACH/USP. É militante da UNEafro Brasil e está como coordenadora do projeto pelo Instituto de Referência Negra Peregum.

**Clayton Belchior: Educador Ambiental Popular e militante da UNEafro Brasil.