Sistema de aproveitamento de água de reuso para valorizar cada gota dos recursos hídricos. Foto: Marcelo José Soares

Por Helen Borborema, da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA)

Você conhece coquinho azedo, pequi, mangaba, araçá, araticum, coco-catulé, cagaita e inúmeros outros frutos do Cerrado? Se depender dos geraizeiros de Riacho dos Machados, no Norte de Minas, parte desses tesouros naturais serão transformados em produtos: polpas, óleos e diversas outras formas de beneficiamento a partir do extrativismo agroecológico. O objetivo é que mais pessoas tenham acesso aos benefícios dessas plantas nativas e, ao mesmo tempo, que seja garantida a geração de renda para as famílias locais através do manejo sustentável da biodiversidade. Para isso, os geraizeiros lutam pela implantação da Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Tamanduá Poções, que é uma forma de conservar o território tradicional e preservar nascentes e recursos naturais existentes.

O Cerrado está presente em 13 estados brasileiros e, graças à sua vastidão e às riquezas da sua fauna e flora, é considerada a savana mais diversa do mundo. Mas, infelizmente, de forma muito contraditória, é também um dos biomas mais ameaçados do país. No Norte de Minas, a região que abriga o Cerrado é conhecida como área de “Gerais”, por isso chamam-se “geraizeiros” a população tradicional que vive no lugar. Como em todo o bioma, também existem devastações e ameaças de grandes empreendimentos que exploram e degradam o ambiente, por isso se faz tão importante garantir estratégias de fortalecimento do território e da geração de renda para as famílias locais. 

A gente luta pela preservação e continuação dos bens naturais que foi deixada pelo nosso Criador”, explica Custódio Camilo, geraizeiro e diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais (STR) de Riacho dos Machados. Segundo ele, a RDS é uma estratégia de geração de renda para as famílias, mas é também um cuidado com as juventudes e as próximas gerações: “Estamos vivendo uma época que a juventude pode nem conhecer o que era tão normal, tão natural em nossa região. Inclusive a pesca e os remédios caseiros naturais e muitos outros. São alternativas que o povo do campo usava para toda sua sobrevivência, garantir a vida longa e mais saudável e hoje a gente tá vendo tudo desmoronando. Então a RDS é uma estratégia para isso.”

Na região do semiárido mineiro, geraizeiros buscam preservação das nascentes. Foto: Fábio José Soares

Segundo Joeliza Aparecida de Brito, geraizeira da comunidade Córrego, presidenta do STR e também diretora do Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA-NM), é muito importante que a biodiversidade e a cultura local sejam valorizadas. De acordo com ela, existem muitas experiências de resistência e preservação ambiental em diversos locais do país, que geram renda e garantem que as famílias vivam bem em seus territórios tradicionais.

Joeliza também falou sobre as inúmeras riquezas e particularidades que existem nas comunidades em Riacho dos Machados e que são pouco conhecidas, como é o caso do coco-catulé, uma planta que fez parte da cultura geraizeira e das estratégias de convivência com o semiárido, e merece ser preservada. “O coco-catulé foi muito usado pelos geraizeiros na cobertura dos telhados das casas, na alimentação dos seus frutos, como também no artesanato, através da fabricação de peneiras, balaios, entre outros”, contou. “É uma planta que tem aqui, a natureza oferece para a gente, já teve uma habilidade muito grande na vida do geraizeiro e continua tendo. Dá um cacho muito bonito. Na época de crise é muito utilizado e faz parte da nossa tradição geraizeira”, completou.

A RDS é uma área natural protegida de um território que abriga as populações tradicionais. Essa modalidade de unidade de conservação permite atividades produtivas e sistemas de exploração sustentável dos recursos naturais. Um dos objetivos da RDS, além da proteção da natureza e manutenção da diversidade biológica, é assegurar as condições para a reprodução e a melhoria dos modos de vida das populações tradicionais que nela habitam. Além disso, visa valorizar, conservar e aperfeiçoar o conhecimento e as técnicas de manejo do ambiente desenvolvidas por essas populações.

Geraizeiros lutam pela criação de RDS Tamanduá- Poções para proteger território tradicional. Foto: Fábio José Soares

Ao todo, são cerca de 150 famílias das comunidades Tapera, Poções, Cabaceiras, Córrego Verde, Córregos e Marimbo. Elas estão realizando o projeto “Cuidando do Cerrado e Promover a Vida” para capacitação nos processos produtivos e melhoria da estrutura no território. As comunidades construíram viveiros e sistemas agroecológicos de produção de frutas, e distribuíram mudas frutíferas. Diversas famílias receberam um sistema de aproveitamento de Água de Reuso, que reutiliza a água usada na limpeza da casa para a irrigação das plantas frutíferas, contribuindo com a segurança alimentar das famílias. Esse projeto foi realizado através do STR de Riacho dos Machados, teve como parceiro o Fundo de Parceria para Ecossistemas Críticos – CEPF Cerrado Hotspot e o Instituto Internacional de Educação Brasil (IEB). 

Parte das famílias já realiza a entrega de frutas para a Cooperativa Agroextrativista Grande Sertão, que beneficia a matéria prima e transforma em polpas que são comercializadas no Norte de Minas.  

A luta pela RDS

As comunidades geraizeiras de Riacho dos Machados estão nessa luta pela criação da Reserva, há cerca de 20 anos. Segundo Joeliza, para a RDS ser consolidada, ainda será necessária a realização de uma audiência pública pelo ICMBio/Ibama, além da articulação e mobilização entre parceiros para mais apoio às comunidades. Ao longo desse tempo, já foi feito o levantamento fundiário e econômico, além dos estudos das áreas, mobilização comunitária e avanço nas articulações nos âmbitos municipal, estadual e federal. Apesar do atual contexto nacional de fragilidade das políticas públicas ambientais, de sucateamento dos órgãos responsáveis e de evidente desprezo do Governo Federal por essas iniciativas, as famílias seguem lutando e construindo dia a dia, com trabalho e muito suor, essa experiência na qual eles acreditam. 

A compreensão da importância da sociobiodiversidade é o eixo central dessa proposta. A presidenta do STR explica que a grande diferença entre a proposta da RDS e parques convencionais criados pelo governo, é o fato de entender que os moradores tradicionais fazem parte desse ambiente de conservação da fauna e flora, bem como considerar as vantagens culturais do agroextrativismo para o desenvolvimento sustentável. Ou seja, é como se fosse um parque, só que com a comunidade tradicional incluída.

Território tradicional dos povos geraizeiros de Riacho dos Machados, no Norte de Minas Gerais. Foto: Fábio José Soares

A área da futura RDS Tamanduá Poções é muito rica em biodiversidade, com destaque para as nascentes, montanhas, fauna e flora. De acordo com Joeliza, atualmente existe um diálogo para tornar o estudo público e viabilizar o apoio no âmbito da política municipal. 

Ameaças

Uma das maiores ameaças a esse território é a mineração. A poucos quilômetros está localizado um dos principais empreendimentos minerários de exploração de ouro em operação no estado. Desativada pela Vale em 1997, após 8 anos de exploração, a mina foi reativada em 2013 por uma multinacional canadense. O processo de licenciamento foi turbulento e com muitas denúncias de irregularidades.

O Mapa de Conflitos Envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, organizado pela Fiocruz, lista diversos impactos socioambientais causados pela Mineradora de  Riacho dos Machados, como alteração no ciclo reprodutivo da fauna, alteração no regime tradicional de uso e ocupação do território, assoreamento de recurso hídrico, contaminação ou intoxicação por substâncias nocivas, falta / irregularidade na autorização ou licenciamento ambiental, poluição do solo, entre outros. Sobre os danos à saúde, o documento lista acidentes, doenças e piora na qualidade de vida.

Comunidades geraizeiras construiram viveiros de mudas para estimular plantio de árvores e também geração de renda através de comercialização de frutas e produtos derivados. Foto: Fábio José Soares

Cerrado brasileiro

Desde o processo de ocupação, o Cerrado brasileiro vem sendo tratado como mato, uma vegetação sem valor que precisa do “desenvolvimento”. Esse pensamento totalmente colonizador ignora as riquezas e biodiversidade existentes nos territórios, assim como a sabedoria e a cultura das comunidades tradicionais que vivem neles. 

O Cerrado abriga cerca de 12.000 espécies de plantas, das quais mais de um terço são endêmicas, ou seja, só ocorrem nesta região. É o segundo maior bioma brasileiro e estende-se por uma área de 2.045.064 km². É conhecido pelos estudiosos como a “Caixa d’Água do Brasil” ou até mesmo conhecido como “Berço das Águas”, pois tem um papel importante no fornecimento de água para o país, abrigando importantes nascentes que são determinantes para bacias hidrográficas da América do Sul. Isso faz com que, de uma forma ou de outra, todos os biomas brasileiros “bebam” água do Cerrado. A fauna também apresenta grande diversidade e uma riqueza muito particular, com pelo menos 2.373 espécies de vertebrados, dos quais cerca de um quinto são endêmicos.

Geraizeiros de Riacho dos Machados lutam pelo Cerrado. Foto: Valdir Dias – CAA-NM