Enquanto o governo federal se omite, garimpeiros exploram rio ilegalmente, 24 horas por dia (Bruno Kelly/Greenpeace)

 

Há pelo menos quatro meses, saindo de Rondônia, garimpeiros seguem vasculhando mais de 1200 km do fundo do Madeira a procura de ouro, até chegar no Amazonas. Nesta semana, repercutem imagens do grande número de balsas que se avoluma em ponto próximo à comunidade de Rosarinho, em Autazes (a 120 km de Manaus). Segundo ambientalistas, são mais de 600 balsas, com mais de 1,8 mil garimpeiros atuando ao mesmo tempo, 24 horas por dia.

Todo mundo, em sã consciência, questiona por qual motivo o governo federal ainda não agiu pela retirada dos invasores. Afinal, a omissão é anuência.

O biólogo doutorando do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Lucas Ferrante alerta que a atividade tende a aumentar os bancos de areia, que no período de seca, pode tornar o Madeira ainda mais intrafegável, lembrando que o rio já sofre com muitas secas e os bancos de areia impactam o tráfego de embarcações que levam produtos e pessoas, tanto de Manaus para Porto Velho quanto de Porto Velho para Manaus e comunidades neste percurso.

Caso isso ocorra, Jair Bolsonaro terá um forte apelo para concretizar um de suas principais promessas de campanha, que é reconstruir a BR-319, que ligará via estrada, Porto Velho e Manaus. Causando danos ambientais imensuráveis, cortando unidades de conservação e comunidades tradicionais e indígenas, a obra tem custo estimado em R$ 2 bilhões.

Em carta publicada pela revista Science em 2020, Lucas, junto ao pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), Philip Martin Fearnside, alerta: “com a BR-319 e suas estradas laterais planejadas abertas ao tráfego, a área desmatada provavelmente aumentaria para mais de 1.200% do nível de 2011 em 2100. A estrada e o desmatamento relacionado afetariam 63 terras indígenas oficiais, que abrigam 18.000 indígenas. O imenso bloco de floresta aberto ao desmatamento por essas estradas contém um estoque de carbono que, se liberado, aumentaria muito as chances de os esforços globais de mitigação falharem em conter as mudanças climáticas”.

E ainda, que “a pavimentação de estradas no interior da Amazônia tem aumentado o número e o tamanho dos veículos e resulta em maior migração, especulação de terras e desmatamento”.

Reconstrução da BR-319 é promessa de campanha de Jair Bolsonaro, ávida por reeleição (Dnit)

Ou seja, é possível que a falta de ação federal seja proposital. O boom de balsas em trechos do rio tornaria inviável a chegada de produtos a Manaus. Se atualmente o rio é o principal meio, a BR-319 seria a opção mais viável. Agradaria mais setores, e especialmente, do agronegócio e garimpo ilegal. E assim, Bolsonaro espera aumentar sua popularidade, de olho na reeleição.

“Há um lobby muito grande do governo para emplacar a rodovia, na defesa de que seria a melhor maneira para transportar cargas e pessoas, mas vale ressaltar, quando o Amazonas vivia o ápice da crise sanitária, o transporte de oxigênio via Madeira representou a melhor logística”. Lucas enfatiza que mesmo que a BR-319 fosse completamente pavimentada, o transporte de cargas por ela, seria 19% mais caro que o sistema atual.

Rio ameaçado

Para ele, a invasão dos garimpeiros ao Madeira, ultrapassa a fronteira dos danos ambientais e de saúde pública. Reduzidas suas condições de trafegabilidade, isso impactará na economia da região Norte. Ao revolver o fundo do rio, a atividade exploratória impactará de tal forma o fluxo das águas que ele se tornará menos trafegável, principalmente, no período de estiagem.

Garimpeiros aproveitam momento de vazante do rio para alcançar cascalho aurífero mais rápido (Bruno Kelly/Greenpeace)

“Em 2010 uma enorme seca fez parar o tráfego de embarcações nesta que é a principal via de transporte de pessoas, insumos e cargas que chegam a Manaus, alcançando até Roraima. Isso já vem acontecendo em anos de La Niña”, explica o biólogo. No ano passado, o rio Madeira superou a seca de 2010 e vários bancos de areia surgiram, afetando a trafegabilidade de balsas e embarcações.

Viria a calhar novas situações como esta, afinal, Jair Bolsonaro poderia emplacar a promessa de campanha.

A atividade altamente destrutiva das dragas preocupa especialistas pois podem causar ainda, desbarrancamento e mudanças no canal, entre outros agravantes. O pesquisador do Serviço Geológico do Brasil, José Luiz Marmos, destacou em entrevista à rede Globo que neste momento, os rios estão em um período de vazante, com baixo nível de água. Essa é a situação ideal para que os garimpeiros alcancem o cascalho aurífero, que fica no fundo dos rios.

“Vai facilitar a a intensidade da garimpagem, a vazante está mais intensa, mais intensa será a garimpagem”, disse. Parece até que tudo estava já bem planejado, não é?

Lucas destaca que houve uma expansão da zona de garimpo devido à baixa fiscalização na Amazônia. “O governo federal sucateou órgãos ambientais mineração atividade ilegal estimulando a criminalidade”.

Sem contar que os criminosos contam ainda com apoio político, como do governador de Rondônia, Coronel Marcos Rocha, que autorizou a operação de balsas e dragas de extração de ouro no rio Madeira, exigindo apenas três licenças e uma certidão ambiental obtidas na Sedam (Secretaria de Estado do Desenvolvimento Ambiental). E claro, não fiscalizou.

Vale lembrar que há quatro anos, garimpeiros vandalizaram sedes do Ibama e ICMBio em Humaitá (AM), às margens do rio Madeira. E depois disso, foram fechadas e os funcionários, transferidos para outros municípios. A iniciativa criminosa dos garimpeiros – que ficou impune – foi em retaliação à destruição, pelos agentes federais, de mais de 30 balsas que operavam em unidades de conservação.

“Não tem como separar o garimpo de pistolagem, de conflitos por minérios, do aumento da criminalidade. Muitos homens que migram para o garimpo, já cometeram crimes como latrocínio, estupro, homicídio. Dessa forma, as comunidades tradicionais e indígenas ficam expostas ao perigo”. Fora a contaminação a que estão expostos. O jornalista Cley Medeiros, que está na região da invasão, conta que as comunidades do entorno da cidade flutuante já suspenderam o consumo de peixes por medo de contaminação por mercúrio.

Ainda que o Ministério Público Federal (MPF) tenha expedido uma recomendação, na quarta-feira (24), pedindo a adoção emergencial de ações para retirada de garimpeiros ilegais que se instalaram no rio Madeira, no Amazonas, até o momento, nada foi feito. O presidente do Conselho da Amazônia, Hamilton Mourão, por exemplo, prometeu uma operação entre a Marinha e a Polícia Federal e tratou com naturalidade o caso: “todo ano tem”, disse ele.

“Todos os anos garimpeiros procuram um lugar com mais ouro. Isso ocorre todos os anos. Normalmente ficam em Humaitá e esse ano deve ter aparecido ouro mais para cima, lá para perto de Autazes”, disse.

Anunciando a todos que haverá operação, ele disse que a PF e a Marinha devem intervir. “Mais a Marinha, que vai verificar a ilegalidade das embarcações”. E que o máximo que aconteceria seria a embarcação ser apreendida, e não destruída como defende o MPF. Ele se esqueceu também que não é permitida a mineração em rios no Amazonas. Ou seja, todos invasores estão cometendo crimes.

O Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas (Ipaam) afirmou que quem deve operar nesse caso é o governo federal. Mas que dá suporte estratégico para que as ações do garimpo sejam interrompidas.

Vale ressaltar, em agosto deste ano, atendendo a pedido do Ministério Público Federal (MPF) em ação civil pública, a Justiça Federal condenou o Instituto de Proteção Ambiental do Estado do Amazonas (Ipaam) a anular licenças concedidas irregularmente para as atividades de extração de ouro no leito do rio Madeira, em área de mais de 37 mil hectares, na região sul do Amazonas. A sentença reafirmou uma decisão liminar de dezembro de 2017 nesse mesmo sentido. Com isso, toda a atividade garimpeira antes amparada por essas licenças irregulares segue paralisada.

A Justiça considerou ilegais e inconstitucionais as licenças concedidas pelo Ipaam em razão da ausência de estudo de impacto ambiental antes da concessão dessas autorizações para exploração mineral e pelos danos ambientais causados pelas atividades de garimpo com o uso indiscriminado de mercúrio.

Quem está por trás da estrutura?

Garimpeiros exibem estrutura e equipamentos nas redes sociais (Reprodução/Internet)

Para o biólogo Lucas Ferrante, não adianta apenas a apreensão, “colocar corrente”. “É preciso que haja a destruição destas embarcações e os garimpeiros sejam presos. E que haja uma investigação rigorosa para identificar a origem dos equipamentos. Afinal, quem ganha não é o garimpeiro. Quem ganha é quem vende ou aluga esses equipamentos”.

Segundo ele, muitos setores estão movimentados pela invasão dos garimpeiros, até mesmo, de carpetes. “Aumentou a venda de carpetes em Manaus. Estes, são utilizados para peneirar minério, para separá-lo da areia. Quem promove essas atividades que deveriam ser proibidas, fomentam a atividade criminosa”.