Por Lilianna Bernartt

A 27ª Mostra de Cinema de Tiradentes, que encerrou este fim de semana, é o evento responsável pela abertura do calendário anual audiovisual. Foram 145 filmes, 61 sessões, mesas de debates e fórum de discussão para planejamento de propostas em prol do cinema nacional contemporâneo.

Dentre os destaques da programação, o filme “Eu Também Não Gozei” chama a atenção por provocar, de forma corajosa, o debate e a desmistificação de temáticas sociais. Responsável pela abertura da Mostra Aurora da competição, o filme dirigido por Ana Carolina Marinho levanta uma questão urgente: o gozo.

Falando assim, de sopetão, pode soar banal em algumas mentes mais ansiosas, mas estamos falando das diferentes consequências biológicas do ato sexual para um corpo feminino e um corpo masculino. E sim: em uma sociedade patriarcal que se pauta na religiosidade para justificar a perpetuação da maternidade compulsória e cercear a autonomia de corpos femininos, esse é um assunto do qual precisamos falar.

Letícia Bassit se coloca como objeto e também sujeito da questão, pois é a partir da descoberta inesperada de sua gravidez que o filme inicia. Letícia se vê grávida, sem a certeza acerca da paternidade de seu filho. São quatros possibilidades, quatro homens cis, dentre os quais, nenhum concorda inicialmente com a realização do DNA. A justificativa de um deles garante a ideia do título do filme: “eu não gozei”.

A sexualidade feminina é historicamente reprimida e condicionada ao ato maternal. O corpo da mulher é tratado como objeto – tanto de desejo, quanto de procriação. Com isso, nosso lugar na sociedade é sempre mantido às rédeas curtas, com a presunção de que toda e qualquer mulher está, obrigatória, social e biologicamente, compelida ao ato inerente à sua existência: o da maternidade.

Enquanto isso, milhares de corpos masculinos geram, sem qualquer culpabilização ou mobilização social, filhos e filhos sem registro de paternidade. Não há como comparar as consequências do gozo para corpos masculinos e femininos. Na verdade, há, mas nem todo mundo se propõe a isso. O filme começa logo denunciando esta problemática social.

Se uma criança foi gerada pelo ato de dois indivíduos, porque a responsabilidade recai somente sobre a figura materna?

Lembro que uma vez assisti a um documentário acerca de uma onça que abandona sua cria e muda de bando, para viver sua vida de forma livre, o que é raro no mundo animal, mas acontece. Falo isso porque a figura materna é diretamente relacionada ao mundo animal com adjetivos como “leoa”.

Letícia Bassit e a equipe frontal do filme, Ana Carolina Marinho (diretora), Anna Zêpa (roteirista) e Amanda Bortolo (produtora e roteirista) são leoas. Não no sentido maternal, mas no outro adjetivo ao qual essa figura é relacionada: ao da coragem.

Acompanhamos a gravidez solo de Letícia, junto aos desdobramentos da investigação da paternidade de seu filho. O processo vai cada vez mais expandindo a discussão quando se depara na parte jurídica da problemática e aí vem o choque de realidade: não estamos preparados para lidar com os direitos da mulher de forma livre e idônea.

As tratativas do caso são cercadas de opiniões basiladas em juízo de valores individuais, que se concretizam: de forma social, com o julgamento do caso concreto, no qual a culpabilização recai de forma majoritária na mulher; de forma jurídica, desde os trâmites administrativos, com a falta de habilidade com a lida da questão feminina no Cartório, por exemplo; até ao trâmite judicial, em que verificamos a flexibilização da questão, sob a égide da proteção dos direitos individuais.

É direito individual da criança saber quem são seus genitores.

Apesar de Letícia deixar claro que não há qualquer intenção em pedir ajuda (de qualquer espécie) do partícipe de sua gravidez, ainda assim, o direito da criança ao (re)conhecimento da paternidade não é priorizado pela parte masculina.

Há de se citar que um dos “candidatos” se propõe a assumir a paternidade e faz o exame. Nesse sentido, “sem spoiler”, o filme também flerta com a possibilidade de discussão do direito socioafetivo.

Independente da resolução da questão, o filme não trata da figura de Letícia, mas através dela, espelha as problemáticas de uma sociedade que sobrepõe em sua regência, ‘valores morais’ criados, formulados, em prol do afeto e empatia entre figuras biológicas (já que falamos de biologia) idênticas, feitas da mesma massa e matéria.

Para começar a concluir, outra questão que não pode deixar de ser ressaltada é a força e a necessidade do cinema feito por mulheres. Com um histórico de apagamento e objetificação, somos cinematográfica e historicamente retratadas sob a ótica masculina, por isso a importância do pertencimento, da identificação, de corpos fora do modus operandi masculino, como ponto de partida para provocação de discussões delicadas e urgentes.

Quanto à linguagem cinematográfica, o documentário parte das vozes compartilhadas dessas mulheres que acompanharam e vivenciaram a partir da situação de Letícia, os fatos narrados. Isso impacta diretamente em nós, espectadores e em como recebemos o filme, já que nos insere diretamente na história. O filme é feito assumidamente de forma crua em termos de produção, o que reverbera em diversos momentos, cabendo à equipe a melhor utilização do material gravado. Quanto a isso, o filme é certeiro e atravessa diretamente o espectador – seja para o bem ou para o mal.

Sendo assim, a temática proposta sobrepõe a discussão do cinema como dispositivo, centrando os holofotes para a discussão da autonomia individual sobre nossos corpos e a responsabilização acerca dos mesmos. Ainda sem parcerias de distribuição, fica a expectativa de que o filme consiga fazer uma trajetória de exibição que lhe permita furar o nicho da bolha cinéfile e alcançar outros corpos, outras vivências, ampliando assim a discussão.