Longa do italiano Matteo Garrone, indicado ao Oscar de “Melhor Filme Internacional”, esvazia debate ao priorizar estética

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Por Alexandre Cunha

Arriscar-se no mar ou em terra para sair de países em conflitos e buscar novas oportunidades. Esta ainda é a perversa realidade de crianças, jovens, mulheres e idosos em diáspora de países africanos, rumo à Europa. Não é de hoje que vemos nos noticiários a lamentável situação: milhares de mortos e estratégias políticas quase nulas para amenizar o problema. É neste terreno que Eu, Capitão (2023), filme dirigido pelo italiano Matteo Garrone, se debruça: acompanhamos a saga dos primos Seydou (Seydou Sarr) e Moussa (Moustapha Fall) que, após juntarem dinheiro, decidem partir de Dacar, capital do Senegal, até a Itália. 

Desde o final dos anos 90, o cineasta Matteo Garrone tem se consagrado como um dos principais nomes da produção cinematográfica italiana. Obras relevantes como “Gomorra” (2008), sobre um reduto da máfia em Nápoles, e “Reality – A Grande Ilusão” (2012), uma ácida crítica à espetacularização dos realities shows, tornaram Garrone um nome presente em festivais pelo mundo. Até filmes mais comerciais, como sua adaptação para Pinóquio (2019), demonstraram a qualidade das narrativas do diretor. Era alta minha expectativa em relação a “Eu, Capitão”, principalmente após sua indicação a “Melhor Filme Internacional” ao Oscar 2024; o que vi, entretanto, ao longo das duas horas de filme, foi um mero exercício estético que trata um tema tão grave de forma leviana e simplista. 

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Os elementos narrativos escolhidos por Garrone deixam claro: o filme se propõe um épico. Com grandes tomadas aéreas sobre o deserto do Saara e uma trilha sonora com características marcantes de um filme de ação, “Eu, Capitão” se esforça em transformar a narrativa em uma jornada do herói. O que Matteo Garrone parece não enxergar é como o filme esvazia a problemática da situação dos migrantes; em determinada cena, um jovem introduz um maço de dinheiro no ânus para evitar que, em uma possível batida policial, ele perca a quantia. A opção do filme é tornar a cena cômica (com os personagens rindo entre si), quando na realidade estamos diante de uma violência absurda e implicitamente opressora.  

E se a violência enquanto elemento estético e narrativo pode ser brilhantemente utilizada em filmes que retratam conflitos sociais, como nos sensacionais Amores Brutos (2000), Um Toque de Pecado (2013) e Bacurau (2019), aqui Matteo Garrone pesa a mão e nos faz questionar sobre sua visão e lugar de fala enquanto homem branco e europeu. “Eu, Capitão” extrapola ao ressaltar os corpos pretos dilacerados. A câmera não tem qualquer pudor em mostrar migrantes torturados com queimaduras, cadáveres empilhados, mulheres convulsionando ao longo da travessia de barco. Talvez com a intenção de chocar através da violência, o que o filme de Garrone causa, em várias cenas, é repulsa. Narrativamente, as cenas de violência explícita em nada acrescentam à obra.

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Boas atuações, mas desfecho decepcionante

Demonstrando uma segurança rara para um ator estreante, o jovem Seydou Sarr oferece uma atuação madura e impactante. Ele carrega o filme nas costas, transitando muito bem entre a leveza e a fúria pelas quais seu personagem perpassa. O elenco ainda conta outros dois destaques: Ndeye Khady Sy, que interpreta a mãe de Seydou, emociona com suas poucas cenas. Por fim, o experiente ator Issaka Sawadogo entrega uma participação do tamanho da sua competência. 

As boas atuações, no entanto, não salvam um filme tão problemático que, para completar, tem um desfecho realmente lamentável. Aqui eu não darei qualquer spoiler: apenas reforço que a obra se nega a debater sobre o papel da Europa na crise. Todos os “vilões” do filme, dos policiais corruptos aos responsáveis pela travessia, são personagens dos países africanos. Matteo Garrone, enquanto italiano, se abstém inclusive de pensar nas nuances que envolvem o próprio país em uma questão tão delicada. Mostra-se omisso; um autor preocupado em criar, em suas próprias palavras, cenas de ação em um filme que é uma aventura. E a tragédia de vidas dizimadas? Fica em segundo plano.

Texto produzido em cobertura colaborativa da Cine NINJA – Especial Oscar 2024