“Estão privatizando os territórios e financeirizando a natureza”
Conversamos com Letícia Tura, da diretoria executiva da ONG FASE e do Núcleo Executivo da ANA, para fazer uma leitura sobre a política ambiental no Brasil nos últimos anos e do recente evento global.
O debate sobre políticas públicas climáticas vem crescendo cada vez mais na Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Com a realização da COP26, a discussão entrou ainda mais fundo na agenda política dos movimentos. O debate vai muito além das medidas de compensação ambiental, realizadas por meio de mecanismos financeiros relacionados ao mercado de carbono, que são o foco das deliberações dos países no evento oficial.
Conversamos com Letícia Tura, da diretoria executiva da ONG FASE e do Núcleo Executivo da ANA, para fazer uma leitura sobre a política ambiental no Brasil nos últimos anos e do recente evento global. Ela também integra o grupo Carta de Belém, que acompanha a questão climática na Amazônia, e foi membro da Comissão Nacional para Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (CONAREDD+), que tratava da implantação do mecanismo de REDD+, conforme previsto na Convenção do Clima.
Na entrevista, Tura faz uma retrospectiva dos grandes eventos climáticos nas últimas décadas e critica as falsas soluções apresentadas pelos governos e mercados. No seu ponto de vista, é fundamental colocar a agroecologia na discussão mundial sobre clima na perspectiva da mitigação, de forma a prevenir muitos problemas ambientais ao invés de remediá-los.
O que pode vir a acontecer a partir das deliberações na COP26?
A COP26 consolidou o processo do Acordo de Paris e o segundo regime climático pós Protocolo de Kyoto, fechando o Livro de Regras. Vimos o avanço do mercado de carbono, que vem sendo discutido desde o início das conferências da Convenção do Clima. Isso vem se consolidando e tem um impacto negativo muito grande nos territórios, nas políticas domésticas e nos resultados de mitigação das mudanças climáticas. Ao longo das conferências, os instrumentos de mercado e seus mecanismos financeiros orientados pela métrica do carbono foram além da compensação (offsetting). Hoje tem várias estratégias financeiras, como os Green Bonds, que são os títulos verdes da dívida, vários fundos de ESG (Environmental, Social and Governance) e por aí vai. Isso vem crescendo e saiu bastante vitorioso nessa última COP, a partir da regulamentação do artigo 6º do Acordo de Paris. Aprovou a transferência de resultados entre países (ITMOS, na sigla em inglês) e o Mecanismo de Desenvolvimento Sustentável (MDS). Tivemos pelo menos uma vitória, porque as florestas ficaram fora do mercado de carbono.
Mas nesses anos, em paralelo à consolidação dos mercados de carbono, não aparecem respostas positivas em relação às emissões. Mesmo com a ratificação da Convenção do Clima, a Terra já aqueceu um grau em relação ao período pré-industrial, conforme a Organização Meteorológica Mundial, mostrando a ineficiência desses instrumentos de mercado. Não são discutidas transformações estruturais no sistema. Esse acelerado aquecimento, a partir dos anos 1980, tem a ver com as transformações na nossa economia global junto ao processo de mecanização, que vai acabando com os postos de trabalho. Uma sociedade cada vez mais baseada no consumo e nas desigualdades ambientais, sendo o mercado de carbono uma proposta que não tenta frear esse processo. Não se realiza, por exemplo, a taxação de grandes fortunas, a demarcação de terras indígenas e quilombolas, o banimento do agrotóxico, nada como ação climática. Também não vemos uma política que perceba a agroecologia como uma ação climática, porque só olham para os grandes poluidores, emissores e desmatadores. Os instrumentos de incentivos econômicos são voltados para eles, e não conseguem inverter a lógica. Não ampliam a participação econômica e social dos setores menos poluidores, nem é feita uma leitura estrutural e as políticas não vão nesse sentido. É uma discussão muito difícil de fazer frente ao contexto político no Brasil e no mundo, com o crescimento da extrema direita. No campo da agroecologia, essas coisas são fundamentais, precisamos reconhecer as ações desses sujeitos para a transformação.
Quando se fala em meio ambiente no Brasil, sempre se remete à Amazônia. No entanto, o Cerrado tem muita importância e segue sendo desmatado para plantar soja e pasto. Esse debate é muito mais diversificado em termos nacionais, não?
Sim, o desmatamento na Amazônia Legal é bastante intenso, sobretudo na área de transição entre a Amazônia e o Cerrado. Cerca de 74% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa (GEE) são resultado de alterações do uso da terra e das práticas do agronegócio, o que é muito diferente da média internacional que está relacionada a combustíveis fósseis. Ou seja, nossas emissões estão relacionadas à expansão da fronteira agrícola e às commodities minerais e agrícolas. Não há suficientes condicionantes e limites ambientais para acesso ao crédito agrícola, uso indiscriminado de agrotóxicos etc, e não se fortalecem as alternativas reais propostas por povos indígenas, povos e comunidades tradicionais, agricultoras/es familiares e camponesas/es. Pelo contrário, perdemos o apoio em várias políticas: Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural para a Agricultura Familiar e Reforma Agrária (PNATER) etc. Esses sujeitos da resistência, com suas práticas de vida e sobrevivência, são os que estão sendo atacados e expulsos de suas áreas.
Qual a avaliação da política ambiental brasileira de forma geral?
O Brasil chega na COP com uma agenda grande de retrocessos em todas as políticas ambientais, nos marcos legais, nos espaços de governança etc. Além dos processos de desmonte das políticas públicas, há também o seu remonte, a partir da privatização dos territórios e ações de financeirização da natureza. As resoluções que saem da COP, como Net Zero e Mercado de Carbono, acabam favorecendo esse tipo de política. Você tem programas emblemáticos nesse sentido, como o Floresta+ Carbono, um programa nacional de pagamentos por serviços ambientais para fomentar múltiplas possibilidades financeiras, inclusive a compensação (offsetting) e o mercado privado de carbono. Dentro deste programa, encontra-se o programa piloto Floresta+ Amazônia, financiado pelo Fundo Verde do Clima, para pagamentos de resultados do País no combate ao desmatamento e preservação da floresta na Amazônia Legal, entre 2014/15, no âmbito do Marco de Varsóvia para Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal (REDD) da Convenção do Clima, que não permite compensação (offsetting) de GEE.
Tem também o programa Adote um Parque, com um processo de adoção por indivíduos e empresas privadas nacionais ou internacionais, que poderão fazer sua divulgação/marketing em unidades de conservação a partir de uma doação para financiar ações do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Tudo isso à revelia das comunidades tradicionais, que deveriam ter sido consultadas desde o início: é uma forma de apropriação do território tradicional. Não há participação nem controle social. Além disso, há o Programa de Concessão de Parques Nacionais, inserido no Programa de Desestatização do governo. São programas de privatização dessas unidades de conservação.
São vários novos programas com muitos problemas de violação de tratados internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre direito de povos indígenas e povos e comunidades tradicionais a consulta livre, prévia e informada . Fora o que está sendo votado no Congresso para regulamentar mercados de emissões no Brasil. O Brasil se preparou para esse resultado da COP, construindo políticas nos poderes Executivo federal e estaduais e legislações para viabilizar esses mecanismos de mercado de carbono, que vão além do que foi pactuado na Convenção do Clima, e, às vezes, permitem relações diretas de uma empresa com a comunidade sem muito controle. É uma discussão bastante complicada.
Quais são as discussões dentro do movimento agroecológico e as perspectivas para os próximos anos?
Precisamos avançar bastante no empoderamento do campo agroecológico dentro do debate do clima. É uma discussão que dificulta a participação por ser muito técnica e com muitas siglas e termos em inglês. Essa roupagem técnica acaba reduzindo a participação, então é importante se apropriar mais do tema para além do debate da adaptação (ação mais relacionada aos efeitos). Precisamos dialogar também sobre agroecologia no campo da mitigação (ações para emitir menos CO2 e reduzir o efeito estufa), além de pensar como ela é uma pauta sistêmica e de transformação do modelo de produção e consumo. A agroecologia fala, sim, de tecnologias, mas também de diversificação da produção, distribuição de renda, de outros sujeitos da transformação, encurtamento dos circuitos de comercialização, formas solidárias de financiamento etc. É uma proposta bastante ampla para a organização da sociedade, então a agroecologia deve estar mais presente no debate climático como algo sistêmico.
A agroecologia foi discutida na COP?
Esse é um dos problemas, porque olham muito mais para os grandes desmatadores e emissores, ao invés do contrário. Focam muito também no carbono e a agroecologia não tem uma visão focada em um elemento da natureza, é algo mais voltado para o sistema de produção, para as comunidades, um olhar mais amplo. Acabam dando mais valor à agricultura 4.0, agricultura de baixo carbono, coisas que estão mais no âmbito empresarial. Quando entra a discussão da agroecologia, vem na tentativa de uma cooptação corporativa que não seria aquilo que a ANA está falando. A questão tecnológica é importante, mas é um projeto político de sociedade. Isso não aparece no espaço oficial da COP, mas está presente nos espaços paralelos da sociedade civil que tem se manifestado, como na Cúpula dos Povos.