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É chegado o momento de riscar o chão e apresentar a emergência de um novo ponto de partida em Salvador e de reconhecer que a Arte Drag figura o centro dessa cena. A noite de sexta (20/12/19) foi marcada por dois momentos que nos apontam isto: O show de Márcia Short (e de 3 dragqueens) e a última Shantay do ano. A arte drag consegue aquilombar hoje uma nova centralidade de poder política na capital baiana por meio da festa.

Márcia lotou o Largo Quincas Berros D’Água com um público maravilhosamente diverso, composto de agentes do setor da cultura, professores universitários, ativistas, muita sapatão, muito viado, algumas trans finíssimas.

Logo na abertura do show de Márcia Short, três artistas de diferentes gerações da cena drag da cidade, Camila Parker, Petra Perón e Yanna Steffes deram o nome, sobrenome e animaram o público ao som de Linn da Quebrada, Donna Summer e Pabllo Vittar no Pelourinho. Ao final da apresentação, Petra Perón fez questão de se posicionar politicamente, no microfone, com um discurso bem marcado pelo combate à LGBTfobia, fazendo daquele espaço festivo um importante encontro da nossa resistência democrática contemporânea.

Short abriu o seu show na mesma linha e com um belíssimo texto de combate a qualquer forma de violência contra a população LGBTI+ e pediu por respeito. Palavras fortes e corajosas em tempos que o Presidente da República, numa clara tentativa de agressão, tenta ofender um repórter dizendo que ele “tem uma cara de homossexual terrível”.

O segundo momento foi a Festa Shantay, na boate San Sebastian no Rio Vermelho. Essa, com uma leve e importante diferença. Igualmente posicionada, a festa tem produção, discotecagem e performance feita com um grande protagonismo drag.

Organizada por Mary Jane Beck, Spadina Banks, Aimée Lumière e Gothan Waldorf a última Shantay do ano contou com a discotecagem destas e de Malayka SN, Victoria Blosson e Nola Criola e da marcante performance de Karma Leoa. Foram vistas montadas por lá ainda Petra Peron e Frutifera Ilha. E desmontadas artistas transformistas da new generation drag na cidade, como Towanda Verde Frita.

A Shantay reuniu um público igualmente variado. Era possível notar o encontro de diferentes classes sociais, gêneros e sexualidades nas duas pistas da festa. Havia de tudo um pouco: ativistas, artistas e produtores, pessoas trans*, bicha poc, bicha barbie, sapatão masculinizada, lésbica futurística, queers e todo um oceano de possibilidades sexuais e de gênero.

A musicalidade variava das divas pops internacionais e nacionais, passando por artistas que deixaram muita gente batendo o koo até o chão ou derretendo nos finíssimos sets de house ou eletro music da pista Inn.

O fato é que a Shantay é, sem dúvidas, a maior festa organizada por drags na principal boate gay (ou GLS, como um dos donos prefere, ainda, se referir) de uma capital neste país. E a capacidade de mobilizar um público tão diverso em torno de uma festividade drag precisa ser bem contornado e, por que não, politizado nesta quadra da história.

O poder drag (drag power) tem forjado uma potente conexão entre uma geração fervida em Salvador, mas não só aqui. A arte drag internacionalmente tem ganhado força entre a comunidade LGBTQI+ e héteras aliadas a partir do seriado Ru Paul’s Drag Race – que aproximou, mesmo que roteirizado, o cotidiano desta cena dos sofás de casa (ganhando adultos, jovens, adolescentes e crianças). Numa dimensão mais nacional Pabllo Vittar e Glória Groove têm cumprido bem esse papel de expoentes da música, sendo elas, quem diria, drags!

O Drag Power tem aproximado, por meio da festa, discussões sobre performatividades de gênero, combate a masculinidade tóxica, orientações sexuais, respeito às minas, etc. Todas essas agendas e questões apontam uma nova centralidade de poder político na capital baiana.

Ou, nos termos da deputada estadual de São Paulo Érica Malunguinho: um novo marco civilizatório – construído a partir e por meio de uma cena festiva.

Esse novo – e fervido – ponto de partida, precisa ser visto com olhos mais atentos. Ferver na Shantay ou num show de Márcia Short é mais do que jogar o corpo no mundo. É assumir, em diferentes graus de compromisso, um certo reconhecimento sobre essa nova partida societária que nós precisamos investir enquanto cidadãs e cidadãos, preocupadas com os rumos que a nossa democracia tem tomado.

Possibilitar um encontro geracional muito potente para mudar tudo que aí está colocado goela abaixo pela Nova Era fascista é também poder resistir. O Drag Power está aí, circulando e estruturando uma nova centralidade do poder, a partir da dimensão sexual e de gênero.

É chegada a hora de entender que festa, política e poder podem – e devem – caminhar juntas. Sobretudo se tiverem como objetivo proteger vidas e promover cidadania e direitos – atacados por governos autoritários como o que temos na condução da República do nosso país. O Drag Power é uma vanguarda desta nova etapa da nossa revolução sexual e de gênero. E, como diriam as irmãs negras: não tem mais volta!