Documentário que retrata a cura guarani do Fogo Sagrado pelo líder Alcindo Wherá Tupã tem mais de 32 mil visualizações no YouTube da Mídia NINJA

Alcindo Wherá Tupã na Casa de Rezo guarani (Opy). Foto: Reprodução / Documentário “Wherá Tupã e o Fogo Sagrado”

Por Lenine Guevara

Alcindo Wherá Tupã é um líder espiritual Guarani, amplamente reconhecido pela rede de aldeias guaranis do sul do Brasil como Karaikuery, curador e líder espiritual. No filme “Wherá Tupã e o Fogo Sagrado”, podemos acompanhar a ritualística de cura promovida por este líder, em um processo até então não documentado. Alcindo na época em que produziu o filme tinha 109 anos, se identificando como uma das lideranças indígenas com maior longevidade no país.

Ao enfocar especificamente seus trinta minutos de filme no processo do ritual de cura, o documentário, assinado pelo próprio Alcindo e seu filho Wanderley Karaí Vydju em parceria com o diretor Rafael Coelho, acaba por refletir questões amplas sobre a situação dos líderes dos povos originários, passando desde a questão da cura espiritual e física sem intervenção de cortes, à problemática de interesse geracional nas práticas tradicionais guaranis.

Wherá Tupã, como vemos no filme, segue como liderança vivendo, curando e arando a terra. A sua narrativa enfoca neste momento de estar diante do fio da vida, e ainda não ter certeza sobre o prosseguimento das práticas de cura com o Fogo Sagrado e trabalhos xamânicos na Casa de Rezo (Opy). Wherá Tupã se considera o último Karaí que mantém a sabedoria do Fogo Sagrado, ou seja, o último guardião a conseguir comunicação direta com Nhanderu (deus criador do universo).

O Fogo Sagrado é um presente de Nhanderu aos guaranis, que Alcindo recebeu e há mais de 20 anos mantém aceso em sua casa. Aquele que recebe esse dom tem a capacidade de ver como um “cinema” as imagens no fogo, mirando o que acontece no mundo físico e espiritual, além de possuir uma espécie de visão raio-x que permite enxergar dentro do corpo dos adoecidos, durante o processo de cura.

Alcindo Wherá Tupã contando sobre a miração com o fogo. Foto: Reprodução / Documentário “Wherá Tupã e o Fogo Sagrado”

Para que a cura se efetive, é necessário o envolvimento da tribo. Alcindo relata a recorrência cada vez mais constante do uso da medicina ocidental e um certo enfraquecimento na crença e na dedicação ritualística, que sempre manteve a saúde do povo guarani. No filme vemos que o processo já está sendo praticado por auxiliares nos rituais de cura, mas ainda naquele momento, nenhum familiar apresentava a capacidade de “ler o fogo”.

O documentário aponta uma contradição que é a busca frequente de não indígenas pelo trabalho do Fogo Sagrado e a recorrência do uso da medicina ocidental em sua tribo. O encontro com o diretor do filme, Rafael Coelho foi feito nos trabalhos de cura nos idos de 2013. Segundo seu relato no artigo “Processo criativo do curta Wherá Tupã e o Fogo Sagrado” para a revista Além (da) Imagem, ele releva que:

“Seu Alcindo Wherá Tupã, com as mãos e a fumaça do petyngua (cachimbo), limpava o nhe’e rete do paciente, através da chupada extraía algo invisível, que era materializado em pedrinhas. No canto final, em frente ao fogo, Wherá Tupã desmaterializou as pedrinhas de suas mãos.”

Além do processo da cura, a questão da abertura do ritual para não indígenas e não iniciados é também conteúdo da narrativa documental. A busca de Alcindo por repassar seus conhecimentos para as gerações mais jovens e de formar novos karaikuery, entre os guaranis, acompanha também uma ampla atuação na comunidade e a observação sobre a importância da construção de outros vínculos com os não indígenas (juruá), para a manutenção das tradições milenares guaranis na região.

Seu filho Wanderley Karaí Vydju, afirma que Seu Alcindo Wherá Tupã, foi o primeiro que abriu a Casa de Rezo (Opy) aos não indígenas (juruás), um desejo manifestado pela conversa com as entidades, que alertaram sobre a necessidade de que estes conhecessem e se aproximasse da cultura guarani.

Os co-criadores do filme, Wanderley Karaí Vydju, Alcindo Wherá Tupã e o diretor Rafael Coelho. Foto: Rafaela Herran

Antes de receber o dom do Fogo Sagrado, Alcindo e sua falecida companheira, Rosa Poty Djá, passaram grande parte de suas vidas migrando pelos estados do Sul do país até ingressar no movimento de reocupação dos territórios guarani. A família se estabeleceu em Santa Catarina ao final da década de 80 na cidade de Biguaçu, com a tarefa de reacender o modo de vida guarani. Desde os anos 90 ocuparam a terra indígena denominada YYNN Moroti Wherá Mbiguaçús, onde, além da moradia e da casa de rezo, construíram a Escola Indígena de Educação Básica Wherá Tupã Poty Djá, em 1998. Inicialmente as atividades se deram no ensino fundamental de 1o ao 8o ano e, em 2008 foram inseridas a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e o ensino médio profissionalizante. Em 2015 a tribo se mudou para a Reserva Indígena Amaral, ou Tekoa Mbyá Roká, também na cidade de Biguaçu.

Se caracterizando como ensino com pedagogias indígenas, o dia a dia da escola está integrado às atividades e rituais da aldeia, e muitas atividades educativas são realizadas no espaço sagrado da Casa de Rezo (Opy), da comunidade guarani, onde o próprio Alcindo participa ativamente nas atividades formativas.

Quadro retratando o casal Alcindo Wherá Tupã e Rosa Poty Djá na Reserva Indígena Amaral Tekoa Mbyá Roká. Foto: Reprodução / Documentário “Wherá Tupã e o Fogo Sagrado”

Neste ano de 2022, o Karaí Wherá Tupã com 112 anos passa por mais um desafio que é a reconstrução do espaço sagrado para as atividades formativas, culturais e para os rituais de cura pelo Fogo Sagrado. O Opy, esse espaço central da prática da espiritualidade, do sistema de saúde, educação e segurança desse povo, precisa ser refeito devido a problemas estruturais.

Neste momento de dificuldade para as políticas indigenistas no país, um dos curadores mais antigos do Brasil segue sua jornada de construção, cura e plantio, integrando a cultura guarani na sociedade, que agora tem a chance de participar de seus processos ao assistir e testemunhar esse documentário.

Para todos aqueles que se identificam com as práticas milenares e rezos sagrados de nossos povos originários, segue a missão de não apenas conhecer e se encantar, mas ajudar estruturalmente para que esse espaço comunitário de cuidado e do intercâmbio com a tradição guarani se reerga mais uma vez, diante de todas as dificuldades para que a simples existência e permanência de outra cosmovisão siga repassada por gerações, e, quiçá, ajude a acender a chama do novo Karaí da tribo Wherá Tupã.

Casa de Rezo (Opy) da Reserva Indígena Amaral Tekoa Mbyá Roká, recentemente demolida por problemas estruturais. Foto: Maria de Oliveira

O documentário “Wherá Tupã e o Fogo Sagrado” segue disponível no youtube da Mídia Ninja. Com produção da Filmes de Fogo, o documentário foi premiado em festivais como no 11˚ FICBC – Festival Internacional de Cinema de Balneário Camboriú, por Melhor Estética; no 15º Curta Taquary, por Melhor Trilha Sonora; no 2ª Sinedoque, pelo prêmio do Júri Popular; e nos internacionais 21º Aporia Village Film Festival (Coreia do Sul), por Melhor Diretor de Curta Documentário e no 12˚ Native and Latino American Film Festival (E.U.A), por Melhor Filme Nativo Americano. O filme também acabou de fazer parte da Mostra Contemporânea Brasileira, do 26º FórumDoc BH, do Panorama SC da 5ª Mostra Sesc de Cinema em Florianópolis e na Mostra Competitiva de Documentário Nacional do 4º Festival de Cinema de Alter do Chão e no 8º Viva Film Festival, em Sarajevo na Bósnia e Herzegovina.

‘Wherá Tupã e o Fogo Sagrado’ fica disponível no YouTube da Mídia NINJA por dez dias