Pedagogias da Navalha: Se a palavra é um feitiço, minha língua é uma encruzilhada, toca na humanização e preservação de forma lúcida das vivências travestis no Brasil. Com direção de Colle Christine, Alma Flora e Tiana Santos, o projeto traz à tela um ebó não linear que nos convida a burlar a dor e a violência que atingem essas corpas, nos ensinando a olhar para um lugar íntimo e acolhedor — o da irmandade.

A proposta é uma arte potente baseada no conceito “oferenda fílmica” de Milena Manfredini, incluindo referências aos Orixás (Exú, Ogum, Oxum, Iemanjá e catiços como pomba giras) e marcos históricos como a Operação Tarântula, iniciada nos anos 1980. Além disso, transforma-se numa ode às “traviarcas” como Xica Manicongo, considerada a primeira travesti – de acordo com os registros — do território brasileiro. Aqui, fala-se de prosperidade.

Para Alma Flora, uma das diretoras do Pedagogias e autora do texto O Brasil Não Chora Por Nós, que guia toda a narrativa, o filme é uma contribuição para união da irmandade travesti no país porque é “através da oralidade, poesia e troca que nós fomentamos e fortalecemos as nossas relações. É como a frase ‘eu sou porque nós somos’.” Afinal, discorrer sobre as travestilidades é, de fato, presenciar os saberes da sua sobrevivência.

Se olhar no espelho e se reconhecer travesti, única e indomável

O enredo traz 3 “bruxas” em cena, um encontro nas encruzilhadas que compartilha acolhimento e vivências. Lua Arruzzo, Ombá Yîàrá e Kátiaa Deusa contam sobre si, cada uma na sua existência única, transmutando a ‘navalha’ em poder, sagrado, defesa e vida.

“Estamos fazendo história: movimento de Sankofa. Olhando para o passado e buscando ‘reontologizar’ a nossa própria existência e identidade a partir das nossas referências africanas, afrodiaspóricas e, principalmente, humanizando a identidade travesti. Ela dialoga tanto com a navalha como instrumento de defesa da integridade física e moral, quanto com o empoderamento espiritual para renascermos”, conta Lua, Sacerdotisa de Candomblé Congo-Angola, sobre as perspectivas que permeiam o documentário.

Segundo Ombá, performer e artista visual, o projeto questiona imaginários ao tocar na vulnerabilidade — a liberdade de expressar choros e sorrisos.

“A primeira coisa que entrei em contato no filme e acessou um processo de cura, foi criar um novo tempo — um tempo antigo — talvez, acessar um novo tempo. Criado por nossas mãos, nossos olhos e ouvidos. Todo o processo em coletivo. Quando falamos em travesti, estamos falando em coletividade: uma identidade que, apesar do Brasil, torna-se entidade. E trazer a potência das negritudes e travestilidades é o que me cura a cada momento; e cura também as minhas irmãs.”

Saudar o passado para que se reconheça no futuro

O Brasil permanece como o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo. Apesar da transfobia ser crime desde 2019, os dados continuam a aumentar ano após ano. E, a cada minuto dedicado ao cuidado de corpos e memórias sociais violentadas, Pedagogias da Navalha se apresenta como um ato de coragem que fala por si só.

“É muito mágico porque viemos de um local no qual a travestilidade se constitui através da oralidade. E, por muitas vezes, assim como a comunidade negra, infelizmente, tivemos as nossas histórias roubadas, sacrificadas, queimadas. É muito importante esse recado ancestral que estamos dando”, afirma Colle Christine, diretora de produção.

Ela acredita que levar essas histórias e vidas para registros físicos, em sua maioria, dominados pela branquitude é materializar “um sonho que as traviarcas de 80 anos, ou até mais, como Xica Manicongo, pensaram” e que hoje trazem como potência.

Abrir caminhos para que se tornem prósperos para todes é um dos principais objetivos desse audiovisual, porque a partir dessas novas realidades, entende-se que a origem e o maior movimento para o futuro das travestis no Brasil parte da coletividade.