Foto: The Daily Beast

Por Luciana G. Console

Até o início de maio de 2020, era proibido pela Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pelo Ministério da Saúde que hemocentros realizassem coleta de sangue de homens que tivessem mantido relações sexuais com outros homens no período de 12 meses anteriores à doação. Ou seja, a restrição da doação de sangue se aplicaria diretamente à população LGBTQI+. No entanto, no dia 08 de maio desde ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubou a restrição, considerando a medida inconstitucional e discriminatória. Além de uma vitória da luta da população LGBTQI+, a decisão do STF chega em ótima hora: devido à pandemia da COVID-19, os hemocentros estão com baixa de estoque de sangue e toda solidariedade é bem vinda.

Para Bruna Benevides, secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), a restrição ter se perpetuado até os dias de hoje tem a ver com o círculo de violência simbólica que envolve a população LGBTQI+. “São preconceitos e discriminações enraizados na sociedade que acabam criando um processo ora de criminalização, ora de demonização, ora de patologização de nossas identidades e consequentemente das nossas existências e práticas sexuais. No caso da doação de sangue era aquela velha premissa dos grupos de risco e aí isso é um entendimento arcaico que precisa ser enfrentado”, aponta ela.

De acordo com o Ministério da Saúde, para um cidadão doar sangue no Brasil, é preciso ter entre entre 16 e 69 anos e pesar mais de 50 kg. Há alguns impedimentos temporários e definitivos, como uma gripe, por exemplo. Contudo, a condição “ter sido exposto a situações de risco acrescido para infecções sexualmente transmissíveis (aguardar 12 meses após a exposição)” era utilizada como impeditivo somente para homens gays, bissexuais e mulheres trans.

Para Bruna, incentivar a doação de sangue LGBTQI+ logo após a decisão do STF é muito importante para garantir a efetivação da conquista. É neste contexto que durante a Semana do Orgulho LGBTQI+, que vai de 22 à 28 de junho, a Comunidade LGBTQI+ se une em campanha para realizar o ato de solidariedade que foi negado à essa população durante anos: doar sangue e salvar vidas. “Também fizemos uma cartilha de passo a passo pra ensinar as pessoas a fazer a doação, visto que existem regras, mas como éramos proibidos de doar, não tínhamos acesso”, compartilha ela.

As atividades da Semana do Orgulho e Resistência LGBTQI+ este ano estão sendo realizadas de forma online devido à pandemia da COVID-19. Cerca de 30 entidades organizaram atrações culturais, debates, manifestações políticas. A Semana se encerra com o lançamento do Conselho Popular Nacional LGBTI+, que encampou a frente de incentivo e a campanha de doação de sangue,  no dia 28 de junho, Dia do Orgulho LGBTQI+.

Restrição de doação de sangue LGBTQI+ cai no STF

Em junho de 2016, a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5543 foi responsável por colocar o tema da restrição em discussão, mas foi interrompida pelo ministro Gilmar Mendes em 2017. Em 2020, com a pandemia pelo novo coronavírus e o estado calamitoso dos hospitais em todo o Brasil, que contam com o estoque de sangue abaixo do adequado, o tema voltou à agenda do STF.

Segundo orientações do Ministério, uma única doação de sangue pode salvar até quatro vidas. Homens podem realizar até quatro doações de sangue por ano e as mulheres até três doações, desde que façam um intervalo de dois e três meses, respectivamente, entre elas.

“A comunidade LGBT, nos seus 20 anos de luta para que a gente fizesse a doação de sangue, nunca questionou as normas técnicas da Anvisa, pelo contrário. Nós questionamos a abordagem que era feita aos sujeitos LGBT, porque a restrição para a doação de sangue era uma pergunta que era feita na triagem do hemocentro”, diz Júlio César, do Coletivo LGBT do MST.

Foto: Divulgação MST

Durante anos, diversos especialistas de saúde se posicionaram a favor da queda da restrição, alegando que não há razões plausíveis que justificassem a prática, já que o risco de contaminação tem a ver com o comportamento e não com a orientação sexual. O próprio Ministério garante que não há como um sangue coletado contaminado chegar até pacientes. Após a doação, o sangue passa por testes imuno-hematológicos, como a tipagem sanguínea, e por testes sorológicos que identificam a presença de doenças como o HIV. Além disso, é realizado o Teste de Ácido Nucleico (NAT), importante para saber se o sangue coletado não estaria em janela imunológica, período em que o vírus pode estar presente no sangue sem ter se manifestado.

Vitória no STF não encerra a questão

De acordo com Bruna, a decisão do Supremo de tomar esse posicionamento é muito importante para a causa e para o país, pois significa a conquista da equidade perante à Constituição e da cidadania destes sujeitos LGBTQI+. Contudo, ela ressalta que ainda há muito o que ser enfrentado e explica:

“Muitas vezes fica parecendo que a gente tem a conquista e está tudo resolvido. A gente tem a conquista no campo do Legislativo, no Judiciário, mas às vezes, no campo social a gente não consegue avançar nesse entendimento.”

Mesmo após a decisão do STF, muitos hemocentros continuaram com as normas anteriores, pois a Anvisa e o Ministério da Saúde declararam que iriam aguardar a publicação do acórdão no Diário Oficial antes de mudar a portaria sobre a doação de sangue. O descumprimento da decisão fez com que entidades ligadas à causa LGBTQI+ atuassem novamente.

“Veja a dificuldade que é no Brasil. A gente conquistou um direito, mas a efetivação do direito teve que ser através de outra ação para que fosse cumprida determinação anterior. Então é muito absurdo e mais uma vez demonstra a LGBTfobia institucional que não quer permitir o avanço das nossas pautas”, reforça Bruna.