Por Juliana Gusman

A crítica especializada tem tentado classificar o cinema que é produzido em Contagem, município da Região Metropolitana de Belo Horizonte, que tem na produtora Filmes de Plástico um agente cultural fundamental. Já se falou de um “cinema proletário”, ocupado das angústias latentes da classe trabalhadora, ou de um “cinema artesanal”, que se dedica, justamente, a escavar as miudezas da vida ordinária. Aventou-se, ainda, a existência de uma “estética de quintal”, que, desde um contexto particular e prosaico, consegue instigar imaginários e plantar a poesia do futuro, capaz de superar, inventivamente, os limites da precarização. Em outra via, propôs-se que a produtora eleva uma certa ordem de filmes inspirados na crônica social, assentados na oralidade da boa prosa.

A mais recente obra forjada no coração criativo de Minas Gerais, Marte Um (2022), chega às salas de projeção no dia 25 de agosto para confirmar – ou alvoroçar – esses arroubos analíticos. Afinal, a despeito das coerências temáticas e formais, o cinema contagense logra driblar e surpreender expectativas. “Acho que as classificações acompanham percepções de cada geração, vontades de ler os filmes a partir de cada momento histórico e como eles remetem a outras vivências paralelas de outras pessoas em outros locais”, reflete Gabriel Martins, diretor e roteirista do longa. Mesmo perfilhando seu trabalho nessas inscrições alheias, Martins aposta nas infinitas possibilidades ensejadas por cada projeto. “Nossos filmes são tudo isso e nada disso também”.

“Situações específicas proporcionaram diferenças no resultado afetivo, estético e técnico que se vê no filme pronto. Essas circunstâncias geram escolhas diante de um desejo de comunicar uma história que é também uma voz, um estado de ser, um sentimento de quem faz aquele filme. Equipe e elenco vão deixando suas marcas a partir de suas vivências e nossos filmes viram representações honestas dos processos pelos quais eles foram concebidos”. Mesmo com a sinergia estabelecida a partir de colaborações longevas – principalmente entre Gabriel, André Novais Oliveira, Maurilio Martins e Thiago Macêdo Correia, cofundadores da Filmes de Plástico que assumem, aqui, a função de produção – Marte Um, assim como seus antecessores, não repete fórmulas fáceis. A pertinência artística do grupo não se confunde com acomodações. Para Martins, “sinceridade é a palavra. Sinceridade com o que a gente está sentindo que aquele filme tem que ser naquele momento – mais cortes, menos cortes, planos abertos longos, planos em movimento, com trilha sonora, sem trilha etc.”. Em Marte Um, engendra-se novos, embora familiares, universos.

Gabriel Martins, diretor e roteirista do longa. Foto: Divulgação

Na trama, acompanhamos uma família negra da periferia de Contagem: a mãe, Tércia (Rejane Faria), tenta conciliar a rotina do lar com uma ansiedade progressiva que lhe desnorteia; o pai, Wellington (Carlos Francisco), se empenha em abrir caminhos para que o filho, Deivinho (Cícero Lucas), de talento promissor, se torne jogador de futebol. O menino, entretanto, sonha em colonizar Marte, enquanto sua irmã mais velha, Eunice (Camilla Damião), começa a desbravar seus próprios afetos. A (cativante) mineiridade da obra não compromete identificações mais amplas. O filme estreou retumbante em janeiro deste ano no Festival de Sundance, nos Estados Unidos e, segundo Martins, foi recebido “principalmente pela potência de seus personagens e elenco. Marte Um está sendo visto com uma conexão profunda e emocional dos espectadores que conseguem se relacionar em um campo da memória e da experiência das subjetividades em tela. Isso me deixa muito feliz pois foi também a minha guia para o filme”.

Fato é que na fortuna crítica das obras da Filmes de Plástico, sempre se sobressaem discussões sobre a direção de atores e atrizes. Em Marte Um, particularmente, o próprio manejo da câmera, sempre muito próxima das pessoas, exalta desempenhos. “A maneira de filmar vai se conectar mais profundamente a uma proposta clássica de contação de história”, explica Martins. A coreografia cênica está a serviço das tensões melodramáticas, propulsoras do vigor da obra. Marte Um reitera o pendor da produtora de instigar interpretações memoráveis.

A Filmes de Plástico, na verdade, tem reunido em torno de si artistas de primeira grandeza, que vêm, consistentemente, costurando o parentesco entre suas diferentes narrativas. Rejane Faria está presente nos longas Temporada (André Novais Oliveira, 2019) e No Coração do Mundo (Gabriel Martins e Maurilio Martins, 2019), além de abrilhantar curtas como Nada (Gabriel Martins, 2017), no qual iniciou a ótima parceria diegética com Carlos Francisco, que, por sua vez, engrandece alguns dos melhores filmes do cinema nacional contemporâneo. “Somos uma grande família que mantem as relações para além da feitura dos filmes. Estas pessoas vão e voltam porque são muito especiais e nos presenteiam com performances muito potentes e que têm a ver com nossas ideias. Cada novo rosto que chega, como Camilla e Cícero, representa mais uma peça nesse mapa de vivências que é muito diverso. O convívio constante vai se fortalecendo a cada filme e deixa uma energia suspensa: quando alguém novo chega, é imediatamente tragado por ela.”

Podemos supor que a complexidade da paisagem humana elaborada por Marte Um seja tributária dessas bonitas alianças. O núcleo familiar protagonista enreda-se em dilemas quase irreconciliáveis de gênero, sexualidade e geração, que agravam agruras individuais já inflamadas pela hostilidade comum que os abala. “A família é uma espécie de organismo que traduz diversas formas como eu penso a vida. Eu espelhei essa multiplicidade em conflitos internos que eu via ao meu redor, mas principalmente dentro de mim mesmo: a fé em batalha com o niilismo (Tércia); o meu machismo e relação complexa com o meu pai (Wellington); o meu lado constantemente sonhador (Deivinho) e a minha vontade de me aproximar mais de perspectivas femininas (Eunice)”, pondera o realizador, que lhes emprestou, não por acaso, o sobrenome. “São sentimentos que se afastam, se encontram e terminam na contradição de ser humano no mundo atual”.

Antes de ocupar o circuito comercial, o filme participa do 50º Festival de Cinema de Gramado, que acontece até o dia 20. Foto: Divulgação

Incursões nas mulheridades também são recorrentes na filmografia da Filmes de Plástico. A Eunice de Camilla Damião talvez seja uma das mais aguerridas e abertamente feministas personagens de um vasto repertório de figuras notáveis, talhadas de uma matéria-prima em carne e osso. “Eu me forço para pensar as mulheres que tive e tenho ao meu redor e entender o mínimo de suas questões com empatia. Sigo sendo um homem com minhas questões masculinas a serem resolvidas ao longo da vida, mas penso que comunicar um sentimento feminino de maneira justa e honesta é um primeiro passo possível para respeitar mais a vivência de mulheres queridas, que amo e que acredito serem responsáveis por resguardar o cuidado em uma sociedade tão bruta”. Como bem sabe Martins, um bom cinema não se faz sozinho.

Marte Um navega, principalmente, pelas micropolíticas da domesticidade, sem se eximir, no entanto, de esbarrar em adversidades de outra envergadura. O filme alimenta, por exemplo, um debate robusto sobre os chamados programas popularescos, que televisionam os sujeitos populares de uma maneira rebaixadora e vexatória. Ao mesmo tempo, propõe formas opositoras de olhar o povo. Há, sem dúvidas, tentativas de reparação: “Sempre mencionei a ideia de uma balança em que temos, de um lado, uma linguagem hegemônica que representa a pessoa negra, periférica e pobre de uma forma e, do outro, nós que tentamos compensar estes signos propondo uma outra coisa. Dito isso, nossos filmes também são muito diferentes entre si, com tons e climas bem distintos se olhados com cuidado. Eu acho que o que a gente faz é um básico de ter um olhar atento e justo ao que se filma, sem se deixar levar por efeitos superficiais e publicitários que não se responsabilizam pelas imagens captadas. Existe uma vontade de construção coletiva com a equipe e elenco que, como já falei, tem como objetivo final uma representação honesta – ainda que ficcional – das presenças em tela”.

Os sons do bolsonarismo também se avizinham desde o início do longa: não há dúvidas que os problemas cotidianos incontornáveis que atropelam paulatinamente as personagens de Marte Um são tangenciados, em alguma medida, pelo neofascismo tropical, mesmo que ele apareça em tom menor. Mas Gabriel Martins faculta esperanças. Não que o diretor descarte o poder argumentativo do pessimismo, também catalisador de necessários entendimentos. Em Marte Um, porém, o realizador opta por um “um posicionamento radical de fé e otimismo, que representa o meu desejo para famílias como os Martins e garotos como o Deivinho”, afirma. “Eu desejo a eles o melhor que eu posso e creio que consigo construir isso em uma imagem de futuro de cinema onde o dinheiro não importa ou, pelo menos, não compra sonhos. É uma imagem que não precisa ser comprovada fora da tela de cinema pois ela representa uma motivação e um pacto do filme com o espectador para que a gente não desacredite no poder da luta. Isso é maior que Bolsonaro e algo que jamais pode ser retirado de ninguém”.

Antes de ocupar o circuito comercial, Marte Um saúda os brasileiros com sua exibição no Festival de Cinema de Gramado, que acontece até o dia 20 desse mês.

Trailer: