“O pênis também é um órgão sexual feminino”, diz Lua Stabile, estudante transexual brasileira na Universidade de Birminghan. Para Lua, a concepção de um “sexo biológico” ainda afasta muito as lutas contra o machismo.

Foto: arquivo pessoal

Uma das poucas jovens transexuais a conquistarem a universidade, quiçá fora do Brasil. Lua Stabile estudou em Brasília em universidade pública e particular. Também trabalhou na ONU e hoje mora no Reino Unido, onde estuda mestrado de estudos de gênero na Universidade de Birminghan. Tendo enfrentado duros confrontos para se formar com o nome social entre outras discriminações no meio acadêmico, Lua acredita que as cotas são um passo importante contra a marginalização da população trans.

Em outro debate polêmico, Lua também ressalta que as mulheres cisgêneras têm muito a aprender com a luta das mulheres trans e vice-versa. Acredita em uma luta saudável em que todas as mulheres possam co-existir na luta contra o machismo.

“Um nicho de feministas não só deslegitima a participação de mulheres trans, mas querem acabar com sua a vivência disseminando uma ideia de que mulheres trans não existem. Acabam perpetuando ideias que fazem com que a sociedade possa odiar a existência de pessoas trans”, afirma. “E no Brasil, o país que mais mata travestis e transexuais, muitos que não concordam com a existência das pessoas trans, vão lá e matam. Como fica isso?”

Veja a entrevista completa sobre este e outros temas.

Esse é o mês da visibilidade trans. Você acha que temos o que celebrar?

Dar visibilidade para essa luta significa dar visibilidade aos avanços que a gente conquistou. Claro que, com relação a avanços de direitos, acesso a mercado de trabalho, acesso digno à saúde, a gente nao tem muito o que celebrar. Mas há alguns avanços com relação ao próprio empoderamento das pessoas trans nos últimos anos. Isso é o que gera a luta das pessoas trans, ter pessoas trans empoderadas. E além disso, é o que tira essas pessoas de uma situação de marginalidade.

Ao mesmo tempo a gente percebe que também há uma reação de partes conservadoras e reacionárias da sociedade a essa visibilidade. Uma reação a esses poucos direitos, poucas ações e poucas políticas para a população trans. Por isso a luta ainda tem muito o que conquistar. As pessoas trans ainda não atingiram um grau completo de dignidade. Ainda falta muito o que avançar em relação à empregabilidade, à saúde pública, à própria da regulação da prostituição.

Muitos têm falado que este será o ano das mulheres, a militância nunca esteve tão forte e ações como o 8M prometem ser um marco no mundo inteiro. Contudo, ainda há um nicho feminista que deslegitima a participação das mulheres trans nessa militância. Você concorda com isso? Você acredita que a participação das mulheres travestis e transexuais são fundamentais ao feminismo?

Eu acho fundamental que as mulheres trans estejam no feminismo. As mulheres cisgêneras têm muito a aprender com a luta das mulheres trans. Não acredito que a gente deva chegar em um ponto de todas terem a mesma perspectiva de feminismo. É preciso haver um câmbio, uma troca de experiências de forma horizontal e saudável para ambos os lados.

Um nicho de feministas não só deslegitima a participação de mulheres trans, mas querem acabar com a sua vivência disseminando uma ideia de que mulheres trans não existem, de que isso é uma ideologia. Acabam perpetuando ideias que fazem com que a sociedade possa odiar a existência de pessoas trans. E no Brasil, o país que mais mata travestis e transexuais, muitos que não concordam com a existência das pessoas trans, vão lá e matam. Como fica isso?

Eu considero o feminismo trans muito revolucionário. Não que o feminismo cis não seja. Toda forma de contestação patriarcal branca e cisnormativa é revolucionária, mas todos temos que aprender uns com os outros. Temos muito o que aprender com o feminismo negro, com o feminismo indígena, das mulheres lésbicas, das mulheres trans, das mulheres cisgêneras. Todos têm algo a acrescentar e o importante é a união.

As pessoas trans ainda têm pouco acesso aos espaços de militância e de discussão das questões de gênero e de feminismo, pois ainda são espaços elitistas, deixando ainda mais as pessoas trans nos espaços de marginalidade. O ataque às mulheres trans no feminismo acaba sendo desproporcional. Claro que não são todas. Muitas de nós estão tendo acesso aos espaços de militância e à universidade, o que faz com que possamos contrapor essas vozes e tentar o máximo de diálogo.

Lua, à direita, entre os bolsistas que conquistaram vaga para estudar no Reino Unido. Foto: arquivo pessoal

Você concorda com políticas de ações afirmativas para pessoas trans nas universidades? Por quê?

Com certeza concordo com essa política, como concordo com qualquer política de ação afirmativa a pessoas marginalizadas e em situação vulnerável. A gente tem que saber que a gente vive em um país majoritariamente negro e a maioria dessas pessoas negras não estão nas universidades, por exemplo. Pode ter melhorias ou críticas a formas como as políticas de cotas são feitas, sim. A questão de pessoas cis utilizarem das políticas para entrar na universidade, enfim… Mas, em geral, haver políticas de ação afirmativa é algo que concordo plenamente, principalmente para pessoas trans. Eu acho que deveria ter não somente na pós-graduação, onde a gente já vê algumas políticas afirmativas acontecendo, mas também na graduação.

As pessoas trans são uma população totalmente marginalizada no Brasil, não conseguem ter o mesmo acesso à universidade de uma forma justa como uma pessoa cisgênera, principalmente se for uma pessoa branca, heterossexual, de classe alta. Muitas vezes as pessoas trans são expulsas ou decidem sair da escola por conta da discriminação, o nome social delas não é respeitado, não deixam ela usar o banheiro conforme sua identidade de gênero, sem contar todos os eventos transfóbicos que as pessoas trans sofrem no ambiente escolar. A questão da família também interfere muito, quando você é expulso ou sofre discriminação em casa, isso interfere muito na sua educação também.

Quando essas pessoas entram na universidade, as políticas afirmativas ajudam ela a sair da marginalidade, de uma situação de vulnerabilidade. É importante pensar que a saída dessas pessoas da marginalidade afeta todo o país e toda a sociedade. A marginalização de certos grupos afeta na economia, a estrutura social de todo o país. Quando as pessoas trans saem desse cenário de marginalidade, o Brasil como um todo vai sentir os efeitos. As pessoas trans podem muito contribuir ao país economicamente, politicamente e também individualmente, além de terem autonomia para serem quem são.

Já vimos na mídia tradicional neste último ano uma reportagem que aliava a transexualidade a uma doença, considerando o distúrbio de “nascer no corpo errado”. O que você acha dessa leitura?

A transexualidade ainda é considerada doença pela Organização Mundial da Saúde, uma patologia, um distúrbio mental. Então ainda há muito um discurso da patologização em muitos locais. E muitas vezes esse discurso patologizante é o que legitima a existência de pessoas trans, o que é horrível. A gente não deveria legitimar uma existência, uma identidade, através de um discurso patológico. As pessoas trans se identificam como pessoas trans assim como pessoas cisgêneras se identificam como pessoas cisgêneras, assim como pessoas heterossexuais, homossexuais. Considerar como doença acaba estigmatizando essa população, gerando mais discriminação, e também acaba fazendo com que essas pessoas tenham que passar por processos muito violentos para terem sua identidade legitimada.

É pelo fato da transexualidade ser considerada uma doença pela OMS que toda pessoa trans no Brasil, pra ter os documentos retificados, precisam conseguir um um laudo ou diagnóstico de um médico ou psiquiatra que confirme que é uma pessoa trans. Ou seja, ela precisa receber um atestado de que está doente, de que tem um distúrbio mental.

O desconforto com o corpo pode variar de pessoa trans pra pessoa trans, isso é algo muito subjetivo, assim como pessoas cisgênero também tem desconforto com o corpo. Há pessoas que querem colocar silicone, que querem fazer cirurgia, se incomodam com o peso. Isso acontece com pessoas trans também, da mesma forma. E também nem todas as pessoas cisgêneras ou trans têm desconforto com o corpo. Muitas pessoas trans só vão sentir desconforto com o corpo pela transfobia que recebem, pelo que as pessoas falam.

Então não existe isso de nascer no corpo errado, de achar que as pessoas trans não se identificam com o genital, e a concepção de que o genital está relacionado ao sexo. Essa concepção de que existe um sexo biológico.

Mesmo que seja uma mulher trans, há essa concepção de que o gênero dela é feminino, mas o sexo biológico é masculino, pelo fato de ela ter um pênis. Mas o pênis também é um órgão sexual feminino se ele estiver em um corpo feminino. A gente precisa acabar com essa concepção binária e biologizante de que existe órgãos sexuais masculinos e femininos. Algumas pessoas intersexo estão aí pra provar que não existem somente dois tipos de genitália.