Por Carolina Martins

O dia 25 de maio entrou para o calendário de datas importantes por celebrar a luta dos países africanos pela independência. Antes, era conhecido como Dia da Libertação Africana, fazendo referência à Organização da Unidade Africana (OUA), criada em 1963 para enfrentar a colonização europeia.

Em 2002, a organização passou a se chamar União Africana, e atualmente reúne 55 países que somam esforços para evidenciar as culturas representativas da África no resto do mundo.

O cinema é uma ferramenta potente de divulgação e valorização das culturas, e a produção audiovisual nos países africanos é pungente. As redes de streaming possibilitam que no Brasil, onde a maioria da população é herdeira direta dos povos africanos, tenham acesso cada vez mais facilitado aos filmes produzidos por lá.

Não conhece? Aí vai uma lista com três títulos celebrados e que estão disponíveis online para você ampliar seu repertório e começar a valorizar o cinema produzido no continente africano.

“Mais Uma Página” (2017)
País: África do Sul

Se você gosta de passear por cenários diferentes, já vale. “Catching feelings” (título em inglês), foi gravado em Joanesburgo, uma cidade vibrante, com uma modernidade contestadora. Várias das cenas passeiam pela vida noturna, restaurantes, galerias e também pelo ambiente acadêmico, uma vez que o personagem principal, Max Matsane, é um professor universitário. Quem o interpreta é Kagiso Lediga, um comediante sul-africano que também assina o roteiro e a direção do longa. Ao lado dele, formando o casal de protagonistas, a estonteante Pearl Thusi (Queen Sono), como Samkelo, uma jornalista muito segura de si.

É um filme sobre relacionamentos: entre casais, entre irmãos, entre professor e alunas, entre amigos. Ele também aborda várias reflexões também sobre racismo, numa cidade que ainda ouve os ecos do apartheid, e fala de como a autoestima do homem negro pode ser frágil, mesmo disfarçada de uma autoconfiança aparente.

Todas essas abordagens permeiam a questão central, que é a discussão sobre traição e o peso que a sociedade ocidental atribui a isso. Quem perdoa é trouxa? Quem trai é mau caráter? O que os olhos não veem o coração não sente? Capitu traiu Bentinho? Faz alguma diferença saber?

São 124 minutos de uma comédia dramática leve, que aborda assuntos atuais de uma forma instigante e divertida. Está disponível na Netflix.

“A Cozinha Incrível de Anesu” (2017)
País: Zimbábue

Uma produção modesta, que se passa na cidade de Harare, capital do Zimbábue. “Cook Off” (título em inglês) foi filmado durante um período conturbado no país, com constantes protestos contra o governo do então presidente Robert Mugabe. As manifestações resultaram no golpe que derrubou o político após 40 anos no poder. O longa enfrentou crises orçamentárias e até apagões de energia elétrica que afetaram o país durante os conflitos.

Os recursos eram tão limitados que o elenco recebeu o pagamento completo somente três anos depois do lançamento do filme, e muitas vezes usou a própria roupa como figurino e utensílios domésticos para composição do cenário. A maior parte das cenas foi gravada nos estúdios da TV estatal do Zimbábue, no set do reality show de culinária do país.

Com esse contexto, você deve estar pensando que o resultado final é precário, né?! Só que não.

Se faltou orçamento para cenas externas e panorâmicas que ajudam a ambientar a história e conhecer melhor a cidade, a cultura gastronômica fez as honras. Anesu (Tendaiishe Chitima) é uma jovem que cria o filho adolescente sozinha e trabalha como cozinheira em um bairro pobre de Harare. Como sempre é muito elogiada pelos dotes culinários, o filho decide inscrevê-la no programa de televisão que premia o melhor chefe do Zimbábue (o reality show existe mesmo, é o mesmo que emprestou o estúdio para a gravação).

Neste enredo, a gente conhece um pouco dos costumes e hábitos gastronômicos zimbabuanos e das tradições familiares e religiosas que ainda marcam a sociedade. O idioma também explora outras línguas oficiais do país, além do inglês. O filme ainda coloca em cena a banda britânica Noisettes, trazendo a vocalista Shingai – londrina, filha de pais zimbabuanos – interpretando ela mesma em uma rápida, porém marcante aparição. O indie rock da banda, obviamente, está na trilha sonora.

O filme teve ótima repercussão internacional, foi exibido em diversos festivais pelo mundo e levou quatro prêmios, incluindo o do Festival de Cambria (Califórnia). Entrou para história como o primeiro filme do Zimbábue a ser lançado depois do fim da Era Mugabe e a primeira produção do país a ser comprada pela Netflix.

“Rafiki” (2018)
País: Quênia

Um filme poético. Bonito. E importante.

O nome já dá pistas sobre o enredo: “Rafiki” quer dizer “amiga” na língua suaíli, que é um dos idiomas oficiais do Quênia. Essa palavra é comumente usada quando casais homossexuais querem se referir a suas parceiras sem dizer que são namoradas. O relacionamento homossexual é considerado crime no Quênia e pode ser punido com até 14 anos de prisão.

“Rafiki” aborda essa temática de uma maneira muito cuidadosa e com foco nos sentimentos. Gravado na capital Nairóbi, o roteiro foi inspirado em um conto literário ugandês e narra a história de Kena (Samantha Mugatsia) e Ziki ( Sheila Munyiva) – duas adolescentes que moram no mesmo bairro e se apaixonam. Além de ser proibida por lei e perseguida pelas igrejas, a relação delas ainda enfrenta uma rivalidade familiar – são filhas de dois políticos adversários locais.

As opções estéticas da diretora Wanuri Kahiu – considerada um expoente do cinema africano contemporâneo – ajudam a construir uma aura muito sensível. O filme é colorido e as tomadas externas nos levam a passear por Nairóbi. A perseguição, as fofocas e as agressões revelam traços culturais de uma sociedade homofóbica e muito calcada no fundamentalismo religioso. O acolhimento que existe em oposição a tudo isso, comove.

A abordagem de um assunto que é tabu no Quênia dificultou a captação de recursos – o filme levou seis anos para ficar pronto. Sem sucesso na mobilização interna, contou com suporte financeiro de dezenas de parceiros internacionais na Europa, nos Estados Unidos e na África do Sul. A produção, no entanto, atrás e na frente das câmeras, é composta majoritariamente por pessoas quenianas.

A repercussão do filme fora do país foi gigantesca. “Rafiki” estreou em Cannes e é a primeira produção do Quênia a ser exibida no Festival. Mas, dentro do país, o filme foi proibido. O governo queniano classificou o longa como de temática homossexual com intenção de promover o lesbianismo. A diretora, após processar o Estado, conseguiu o direito de exibição por sete dias, mínimo necessário para concorrer ao Oscar de Melhor Filme Internacional. Apesar de preencher o critério, “Rafiki” não foi escolhido para representar o Quênia na disputa. O filme está disponível no Telecine ou para alugar no Youtube.

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