Cracolândia na Maré: a vida e o uso de crack no Rio de Janeiro
Estamos no Complexo da Maré, favela da região norte do Rio de Janeiro. Um lugar de absurdos e potências, onde histórias costuradas entre si formam parte da história da cidade do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo.
Por Hannah Vasconcellos e Mirna Wabi-Sabi
Fotos: Fábio Teixeira
Estamos no Complexo da Maré, favela da região norte do Rio de Janeiro. Um lugar de absurdos e potências, onde histórias costuradas entre si formam parte da história da cidade do Rio de Janeiro, do Brasil e do mundo. Lá, é escancarado o que a sociedade, em um misto de confusão e vergonha de si mesma, tenta esconder. Não é possível simplificar a Maré ou suas histórias para entendê-la: é complexa, contraditória e consegue reunir opostos, desafiando o entendimento. Os tentáculos de um sistema corrupto de exploração alcançam aqui.
Agora, estamos em uma das cenas de uso de drogas do complexo de favelas da Maré. Chamada pejorativamente de cracolândia, a região fica na Avenida Brasil, que corta o Brasil, com seu tamanho continental, de ponta a ponta. É aqui que são despejados e contidos os excessos humanos. E também é aqui que um campo de concentração sem muros se mantém pelo roubo da autonomia dos frequentadores da cena de uso de drogas. Sabemos quem é o ladrão.
A cracolândia é chamada assim porque seus frequentadores consomem majoritariamente o crack, droga feita de duas substâncias comuns e de um estimulante ilícito: água, bicarbonato de sódio e cocaína. O crack é barato, tem efeito rápido e muito volátil. Quem consome fala de uma intensa sensação de poder, euforia e prazer, além de acabar com a fome. Um usuário de crack pode perder cerca de 10 kg em um mês por não ter apetite. O vício, dizem, chega rápido e é a causa da constante violência e miséria tão características das cenas de uso, seja na Maré ou em Michigan. Não é bem assim.
O que separa o uso de drogas e a dependência em drogas? Para o neurocientista Carl Hart, a resposta está por trás da reflexão provocada por essa pergunta. Ele é o primeiro professor negro titular de neurociência da Universidade Columbia nos Estados Unidos e estuda os efeitos do crack. Hart afirma que não é a química da droga que é altamente viciante e causadora das mazelas sociais dos usuários. É o exato oposto.
“Sempre fui camelô”. Adriana, 30, tem miopia severa mas não tem condição de substituir os óculos, e quer ser dançarina. “Meu maior obstáculo é a droga e a rua, porque a rua vicia. Tem gente que eu conheço que nem usa, mas fica na rua por que é o vicio da rua.”
As consequências nefastas do capital enquanto sistema global, que cria e recria excessos humanos essenciais para sua manutenção, tornam o crack – e qualquer outra droga lícita ou não – altamente atrativa e viciante. A usurpação de autonomia e a criação de vulnerabilidades abrem espaço para a exploração, base fundante e indispensável do capitalismo. O que separa, portanto, o uso de drogas da dependência em drogas é a autonomia. As drogas ilícitas são apenas o bode expiatório de governos que não têm interesse em criar oportunidades e garantir acessos a um lar seguro, comida de qualidade, boa educação e apoio emocional.
“O crack é a solução para o problema da rua. E a rua é o vício do sistema. A pedra mata a fome, mata o frio, mata o sentimento. Ela supre as necessidades.”, diz Talita, ex-usuária de São Paulo (não é a pessoa retratada acima).
A definição coloquial da palavra “vício” sugere fraqueza moral, falta de autocontrole e um defeito pessoal. Além disso, existe uma distinção entre o vício que leva à dependência química e pscicólogica. Essa definição é injusta com a realidade dos usuários de crack e não é a definição de pesquisadores na área. Para entender a complexidade da dependência química, é útil entender o oposto de dependência: a autonomia.
Segundo a psiquiatra e acadêmica Flávia Fernando, a autonomia não significa independência completa. Afinal, vivemos em um planeta onde é inevitável influenciar uns aos outros, e depender de outras coisas e pessoas. Dependemos da água não estar poluída, da comida chegar à supermercados, do vizinho fazer silêncio para podermos dormir, em alguns casos de remédios psiquiátricos, e sempre de uma cama e um teto também. É impossível ser completamente independente. Portanto, “autonomia” significa poder depender de uma vasta quantidade de coisas e pessoas, ao invés de depender de uma única coisa. Em outras palavras, a dependência é superada uma vez que torna-se possível depender de uma variedade de outras coisas.
Autonomia pressupõe escolha e os frequentadores da cena de uso de drogas da Maré não as têm, foram roubados. Entre homens e mulheres, majoritariamente jovens e negros, eles e elas vivem embaixo de um viaduto em construção, espremidos entre duas vias da maior avenida do país: não têm dinheiro nem para pagar a casa mais barata da favela. Sem muito a perder, se arriscam entre os carros para chegar de um ponto a outro da avenida. O barulho, a poluição e a violência são tão onipresentes quanto o ar. A “guerra às drogas” chega aqui em formato de bala de fuzil vinda de um helicóptero da polícia. A “redução de danos” chega aqui em formato de internação compulsória, trabalho braçal forçado e doutrina cristã obrigatória.
Se levarmos essa perspectiva sobre autonomia e dependência em consideração ao olhar para usuários de crack, desenvolveremos uma compreensão mais refinada das causas por trás do chamado “vício incapacitante”. A substância em si não é o que causa crime, miséria, pobreza e assim por diante. Se fosse, a “guerra às drogas” teria sido mais eficaz, pois se propõe erradicar as substâncias por meio de intimidação de usuários e traficantes. Impossibilitar ou dificultar o acesso às drogas não resolve o problema de falta de moradia, baixa auto-estima, escassez de opções profissionais, falta de acesso à educação enriquecedora e até à uma dieta saudável. A causa por trás da dependência ao crack é, no entanto, o fracasso da sociedade em fornecer um leque mais amplo de oportunidades. Em outras palavras, o problema é a nossa incapacidade de oferecer opções para essas pessoas, e a chance de poder escolher e poder contar com o que é oferecido.
A perda de autonomia é também a perda de identidade. Com opções limitadas, a oportunidade de se fazer escolhas pessoais é escassa. A individualidade desaparece, assim como desaparecem as impressões digitais das pessoas que usam a droga severamente.
A polícia coage e atira indiscriminadamente, afinal, lida-se com corpos inidentificáveis. Esta coerção armada garante a manutenção de campos de concentração urbanos de paredes invisíveis, uma ação que faz de tudo menos minimizar a violência e a miséria.
Quando usamos o termo “campo de concentração” nós deliberadamente aludimos ao fascismo que já vimos se manifestar institucionalmente na Europa. O fascismo propõe um sistema político no qual se permite a violência eliminacionista; a conexão entre a ideologia nacionalista e a perspectiva de “limpeza” populacional é inegável. No Brasil, nós chamamos isso de politica de extermínio.
“Extermínio” é aqui usado no senso literal, assassino, do termo. De acordo com os 10 estágios de instrução sobre o Genocídio formatados pelo presidente do Genocide Watch, o estágio 8 consiste de expropriação, deslocamento forçado, guetos e campos de concentração. O complexo de favelas da Maré no Rio de Janeiro é um gueto que exibe indiscutíveis indícios de expropriação e deslocamento forçado. Também sob a égide da ajuda paternalista do Estado, as 16 favelas da região foram construídas no entorno da Avenida Brasil. A construção da via, onde fica a cena de uso de drogas da favela sobre a qual esse texto versa, escancara como as dinâmicas capitalistas edificaram um dos maiores complexos de favelas do estado do Rio de Janeiro.
No final da década de 1940, as obras para abertura da Av. Brasil atraíram grande migração nordestina para o sudeste, da região mais pobre do país para a mais rica. Com baixos salários, que não custeavam nem a passagem de volta para casa, a saída encontrada foi a construção de casas precárias nas poucas áreas secas da região que ainda era um mangue. Estão lá até hoje.
A outra parte da história da criação da Maré também escancara o modus operandi do sistema capitalista global. No início da década de 1960, o poder público, manejando o excesso humano essencial para o capitalismo manter suas atualizações, removeu moradores das favelas das zonas ricas do Rio de Janeiro para a afastada e empobrecida Zona da Leopoldina, região histórica da zona norte da cidade.
Mais recentemente, o projeto de obra de transporte público que prometia conectar o aeroporto internacional com áreas nobres do Rio de Janeiro cortando a Maré, o TransCarioca, está indefinitivamente inacabado. Os restos da obra hoje abrigam a “cracolândia“, e os responsáveis pelo fracasso da execução do projeto estão presos. O ex-secretário de obras[1], preso no ano passado, recebia propina e gerenciava a execução de uma obra sem semelhança alguma com o projeto financiado. O desvio de verba é um crime que causa danos a pessoas por gerações.
Daniele, 37, tem um filho de 9 anos, não o vê há 4 anos. Usuária de crack desde os 23 anos de idade. “O crack tira os neurônios, come tudo. Meu sonho é sair dessa vida e criar meu filho. Coisa que eu não fiz quando ele era criança, pequeninho. O único sonho que eu tenho é conseguir largar o crack e interagir com a sociedade novamente. Porque essa droga me faz vegetar. Eu não sei o preço de 1 kilo de açúcar. A programação da TV também não sei te dizer. Acordei hoje com operação na Maré e a vontade ‘abstinêntica’ de usar crack. Muito tiro, tiroteio de verdade. Usuário de crack sofre todos os tipos de preconceito.”
A vulnerabilidade criada pela remoção forçada das pessoas de suas casas foi a base da construção do complexo da Maré, e é a sua recriação constante que mantém os muros invisíveis daquele campo de concentração.
Os 10 estágios do Genocide Watch citados acima nos permite reconhecer o desenvolvimento desse sistema genocida. Usuários de drogas foram enquadrados como “os outros”; a discriminação racial e de classe em diversos níveis na sociedade impossibilitou o acesso a espaços e oportunidades; a desumanização do processo de perda de autonomia e identidade impossibilitou o auto-conhecimento e o desenvolvimento da auto-estima; a polarização da mídia durante as eleições em relação ao crime e à “guerra às drogas” reforçou violentas políticas de segurança pública; intervenções militares/policiais aterrorizam e matam; o deslocamento geográfico forçado fragiliza a comunidade como um todo; e, finalmente, o índice de mortalidade extremamente alto de um grupo específico e geograficamente contido espelha um holocausto.
A promessa de um estado de segurança, diante da criação e recriação constante de uma ameaça cada vez mais perigosa e inexistente, se propaga com sucesso através da invenção de um imaginário coletivo no qual uns são objeto de empatia e outros, de desconfiança. A separação física entre esses dois tipos de pessoas, feita com muros ou não, é a maneira mais fácil de colocar em prática os genocídios – objetivo e subjetivo – que servem ao capital. Fronteiras nacionais, apartheids, campos de concentração, encarceramentos em massa, guetos e cenas de uso de drogas são algumas das atualizações.
Usando direitos humanos como pele de cordeiro, o monstro capitalista atualiza suas dinâmicas ao aglutinar ferramentas de resistência social. A guerra e o genocídio são postos em prática globalmente desde o século XVI sob a justificativa da ordem e do controle do outro pelas normas do universalismo europeu. Nos séculos XX e XXI, a supervisão paternalista diante das revoluções anticoloniais, acionadas pelos direitos humanos, colocaram em prática a exploração necessária para a manutenção do capitalismo. Ainda não foi possível pensar os direitos humanos para além do capital. Será possível um dia?
Edna Cristina, 43, tem 9 filhos e usa há 12 anos. Diz que ter lugar para morar e estar com os filhos a ajudaria a parar de usar. Ela gostaria de trabalhar como ajudante de cozinha, não terminou os estudos, sabe ler e escrever “mais ou menos”. “Não tenho condições financeiras para ter um lugar para morar.”
Os métodos violentos do Estado, ao desejar aniquilar a alteridade que resiste à ordem, são dissimulados pelo discurso do bem-estar social e dos direitos humanos direcionados a esse outro. É preciso punir e controlar pois o outro não é capaz de determinar o que é melhor para si: a autonomia segue sendo roubada. Com a constatação de que o Estado é inerentemente violento, a política como continuação da guerra passa a fazer sentido. É a “paz perpétua por meio da guerra perpétua” (do livro “Extinção” de Paulo Arantes). É a ordem nos termos hegemônicos conquistada pela militarização da vida nas cenas de uso de drogas, guetos, favelas e periferias pelo mundo.
O sistema capitalista, além de estrutural e estruturante, se atualiza a cada momento, criando novos tentáculos que são capazes de tocar – e destruir – cada vez mais longe e mais fundo. Não há lugar, objetivo ou subjetivo, que esteja salvo. E o genocídio tem jeitos diferentes de matar. O capitalismo não quer apenas corpos mortos, mas também corpos sem vida. O genocídio subjetivo está presente nos olhares perdidos, no jeito neurótico de agir e na constante desconfiança.
Nossa sociedade tem problemas para os quais as soluções não serão lucrativas, serão apenas justas. Coagir, encarcerar e matar usuários de drogas desabrigados é lucrativo para alguns, mas não resolverá o problema do abuso de drogas. A solução está em assumir a responsabilidade, como sociedade, por sistematicamente destruir a auto-estima dos povos marginalizados e por sustentar uma estrutura de oportunidades descaradamente desiguais.
[1] – Escolhemos politicamente não colocar o nome do secretário porque acreditamos que o problema é sistêmico, institucional, estrutural, estruturante e não se resume ao indivíduo.