Jairzinho comemora o gol sobre a Itália, na decisão do Mundial do México em 1970. Foto: Erno Schneider / O Globo

Por Ben Hur Samuel

Em 1970, homéricas situações se entrelaçavam simultaneamente durante o evento esportivo mais importante do planeta. Glauber Rocha, já exilado, produzia seu filme menos comentado afirmativamente: “O leão de sete cabeças” na África com o apoio fundamental de cineastas e intelectuais daquela época. Milton Nascimento lançava seu homônimo álbum “Milton”, que continha em suas faixas canções como “Para Lennon e McCartney” e “Clube da Esquina”.

Os debates efervescentes sobre preconceito racial eram propostos por intelectuais do movimento negro norte-americano que buscavam igualdade intelectual influenciando uma ação inspiradora para o mundo de outrora motivacionalmente. Nos porões escusados do DOI-CODI, revolucionários de esquerda, cineastas, professores, intelectuais, cantores, pais de família, seres humanos em suma, eram levados a exposições desumanas para o favorecimento da perpetuação militar, algo que escusadamente ocorreu na América Latina naquele período.

Mesmo com o aprisionamento de uma parte da população que buscava incansavelmente resistir ao golpe de estado brasileiro, o governo utilizou métodos já baseados em governos totalitários de outrora para fornecer uma imagem positiva do país diplomaticamente. A vitória contra a seleção italiana em 1970 na Copa do Mundo disputada no México seria a maior arma do suposto “milagre econômico” nacional contra a oposição.

O chamado “milagre econômico” era a principal bandeira da ditadura no período da Copa de 1970. Charge: Jaguar

O time comandado por Zagallo que tinha Tostão (Cruzeiro), Rivellino (Corinthians), Gérson (São Paulo), Dario “Dadá Maravilha” (Atlético Mineiro) e entre todos, a estrela predestinada ao sucesso internacional, Pelé (Santos) que havia sido categorizado unanimemente naquele tempo como o maior jogador de todos os tempos. Foi o bode expiatório que os militares brasileiros acharam para erradicar quaisquer críticas contra o governo militar. Enquanto a televisão mostrava a Copa do Mundo em cores pela primeira vez, a repressão endurecida fornecida por traidores da democracia tornava as cores de nossa bandeira sua maior arma política. Isso foi apenas um capítulo da história que apesar de massivamente negada, não pode ser esquecida.

Em 1978, o Estado brasileiro já havia se enfraquecido por elementos predecessores da Anistia que ocorreria um ano depois em 1979. Havia uma grande expectativa nacional de uma erradicação da postura militar que só ocorreria de fato em 1985. Mesmo assim, os opositores à Ditadura Militar (que já eram a maioria nacional naquele tempo) sentiam prazerosamente que o pior momento já havia passado. Haviam elementos nacionais que porventura resistiram de sua maneira ao Regime Militar.

Em 1976, o filme “Dona Flor e Seus Dois Maridos” trouxe em sua canção-tema “O que será?” de Chico Buarque (quiçá o nome mais prolífico no tocante à resistência contra a ditadura naquele tempo) paradoxalmente à relação de um País sem governo ao se referir à Dona Flor em um de seus versos: “O que não tem Governo,nem nunca terá” em um filme que, até 2011, foi a maior bilheteria nacional de todos os tempos, sendo na época, o filme brasileiro mais visto da história.

Em 1978, o grupo mineiro Clube da Esquina (o mesmo que em 1972 lançou o álbum de mesmo nome) lançou sua segunda versão de projeto utilizando, em uma de suas faixas, a canção “O que foi feito de Vera”, uma alusão ao primeiro nome dado ao Brasil, Vera Cruz, que criticava e esperançava por um país democrático rompendo elementos perpetuados pela censura do Regime, coisa que havia se tornado praxe de artistas brasileiros naquela época.

Em síntese, em 1978, a Seleção Brasileira já não era favorecida por fatores disruptivos, mas indubitavelmente por jogadores que entraram para a história.

Nelinho (Cruzeiro) tinha uma potência antológica sobre seus pés que tornaram sua convocação mais fácil inequivocamente por uma pressão popular e por parte da imprensa da época.

Zico facilmente dispensaria comentários no tocante à sua habilidade futebolística, o jovem meio-campista na época com 25 anos de idade, tornaria depois de conquistas augustas, o jogador mais aclamado do Flamengo Esporte Clube unanimemente.

Havia outros que se tornaram lendários com o tempo: Toninho Cerezo, Rivelino, Roberto Dinamite e Chicão. Todos, além de craques, eram homens notáveis por seus sonhos peremptórios, mas havia um entre eles que destacou-se um pouco mais além: Reinaldo.

O vice campeonato brasileiro de 1977 havia sido a chave de ouro para o jovem atacante atleticano se destacar como um dos mais habilidosos de seu tempo e em suma, sua posição política utilizando o punho cerrado no meio de militares alegoricamente referenciando aos Panteras Negras norte-americanos havia se tornado sua marca registrada e sua maior controvérsia em meio aos militares.

José Reinaldo de Lima, o Reinaldo, foi um dos grandes símbolos de resistência durante a ditadura militar no Brasil. Foto: Delfin Vieira/AJB Rio

Apesar do fato de receber avisos massivos oriundos dos militares, o jovem jogador foi convocado para a Copa do Mundo de 1978 na Argentina, onde sua ditadura era tão dramática quanto foi em seus vizinhos sul-americanos. Havia ainda uma postura militar argentina (assim como os militares brasileiros em 1970) de maximizar a Copa como um elemento político para erradicar opositores e eventualmente tornar uma potência mundial como um fator cultural.

O resultado imediato foi a conquista argentina (controversamente) em seu próprio país sede e a seleção brasileira terminou o torneio como uma das maiores seleções a não vencer uma Copa, algo que ocorreria em 1982 novamente, desta vez sem Reinaldo.

É lícito se referir a Reinaldo como um dos fatores-chave de nossa Anistia, um jogador que se apropriou de sua inteligência extra-campo para romper elementos primitivos de uma ditadura. Depois dele ainda veio a Democracia corintiana com Casagrande e Sócrates, na qual ambos explicaram ao mundo a necessidade de um povo de votar por um líder democrático.

Algo que buscamos entender quase 50 anos depois de seu apogeu, é como Reinaldo se apartou de um silêncio massivo na época para se apropriar de suas bandeiras e lutar em uma Copa tomada por militares fora de sua Pátria-mãe, ele é um símbolo a ser seguido atemporalmente.

O que podemos aprender destas primazias depois de tanto tempo, já em 2022, em uma Copa cercada por suas próprias polêmicas?

Creio que o ato de resistência não é apenas um ato feito em campos onde as ciências sociais são tomadas como uma primazia maior, mas deve ser inserido em todos os campos, inclusive o futebol. Pequenos maneirismos feitos por jogadores e intelectuais da época foram particularmente responsáveis por nossa anistia e porventura, nossa atual democracia. Que nesta edição atual do evento futebolístico mais significante do mundo hodierno seja marcada por atitudes voltadas para a resistência de comunidades que outrora sofreram punições sôfregas e assim, chegaremos a uma anistia moral e cívica, que é o que merecemos.