Foto: Vanderson Bentevi

Por Lilianna Bernartt

Diretora, atriz, produtora, cineasta, mulher negra e mãe, Izah Neiva faz parte da leva de artistas independentes que, com muito trabalho, determinação, talento e resistência, consegue superar as adversidades estruturais do nosso cinema brasileiro e produzir suas próprias histórias.

Sua história no audiovisual é de grande importância para a representatividade negra, tanto na frente quanto atrás das câmeras. Formada em Gestão Financeira, começou a estudar Artes Cênicas aos 32 anos de idade. A partir de então, sua trajetória com a arte se tornou indissociável. Conciliou suas diversas participações como atriz em produções audiovisuais e espetáculos teatrais com sua graduação, pós-graduação e MBA em cinema e atuação para cinema.

Durante esse período, muitas vezes se viu como a única presença feminina negra nos sets de filmagem, constatando a falta de representatividade e oportunidades no audiovisual brasileiro. Apesar de atuante no cenário, era limitada pela constante superficialidade das personagens que lhe eram oferecidas, carentes de força motriz para o desenvolvimento da narrativa em geral.

O cenário audiovisual brasileiro ainda apresenta um déficit estatístico em relação à representatividade de gênero e raça, mantendo a hegemonia do protagonismo branco e machista.

No que diz respeito ao protagonismo negro – em particular o das mulheres negras – suas participações ainda são sugestivas e oscilam entre papéis sociais restritos, perpetuação de estereótipos relacionados à objetificação de seus corpos ou personagens com função social relevante, mas que carecem de desenvolvimento narrativo suficiente, tornando-se por vezes personagens simulacros de uma representatividade que não se concretiza.

Infelizmente, Izah também vivenciou situações como essa, tendo travado uma batalha judicial ferrenha em defesa de seu filho vítima de racismo na infância. O processo criminal se estendeu por nove anos e fez com que Izah reavaliasse seu posicionamento artístico nessa questão.

Apesar de tudo, sempre permaneceu trabalhando, se aprimorando e criando.

Sua primeira experiência na direção foi dupla: como atriz, em frente às câmeras, e como diretora, no curta-metragem “A Última Chance” (2017), que ganhou o prêmio de Melhor Filme pelo Júri Popular na I Mostra Cineastas Negras de Brasília.

Em seguida, dirigiu o documentário “Era uma vez em São Paulo” (2019), que acompanhou a candidatura a deputado de Paulo Henrique Machado, único paciente vitalício do Hospital das Clínicas. O filme recebeu menção honrosa de Melhor Filme Social no Festival Rota em 2021.

Seu próximo curta-metragem marca um ponto importante em sua carreira. Em “O Menino da Moeda” (2021), a cineasta realizou seu primeiro trabalho autoral, abordando diversas questões sociais e raciais. O curta-metragem lhe rendeu o prêmio internacional de Melhor Direção no Festival DGIFF – The Digital Gate International Film Festival, competindo com mais de 80 curtas-metragens de 34 países.

O filme conta a história de Vera, uma mulher de classe média que, após um encontro com um menino de rua no farol, inicia um processo de ressignificação. O roteiro, baseado em um fato ocorrido na vida da cineasta, foi escrito por ela como projeto de conclusão de seu curso de MBA e originalmente pensado para uma protagonista branca.

Questionada acerca do porquê de um protagonismo branco inicial, a cineasta reflete:

“Mesmo a história tendo se passado comigo, na época em que escrevi, imaginava uma atriz branca para protagonizar uma vivência minha. Eu estava acostumada a ver protagonistas brancas e era também o costume dos tipos de produção da época. Foi quando uma amiga minha me questionou do porquê de eu não interpretar Vera. Por que, agora que estava escrevendo e não dependia de escalação de terceiros, não me colocava no posto de protagonista. E só então entendi na pele o que o racismo estrutural faz com a gente, a ponto de não me ver na minha própria história e repetir padrões perpetuados com a falta de representatividade. Foi quando então comecei a me questionar acerca do condicionamento do meu próprio fazer artístico, e resolvi reescrever o roteiro”.

Izah reescreveu o roteiro e o inscreveu em diversos editais. Quando o filme foi contemplado, por opção técnica, abdicou do posto de protagonista do filme em prol da direção e fez questão de trabalhar com uma equipe majoritariamente feminina – inclusive sua protagonista – Vera, vivida pela atriz Thais Cabral.

Em “O menino da moeda”, a diretora faz uma crítica ácida às desigualdades culturais, sociais e étnicas de nosso país, através de uma narrativa dualista. Sua protagonista é uma mulher negra, bem-sucedida, fruto do embranquecimento da nossa sociedade, que segue padrões comportamentais e estéticos pré-estabelecidos. Com o desenrolar da narrativa, ela se conscientiza acerca de suas perspectivas e se reapropria de sua própria essência, assumindo suas origens.

Como resultado, a diretora atinge com efetividade a crítica social, fugindo de qualquer reforço de representação feminina/racial estereotipada.

A abordagem se perpetua em seu próximo trabalho, o curta-metragem “Firmina” (2023), cujo roteiro é de Adelmo Passos. A protagonista é interpretada por Teca Pereira, uma atriz negra que vive sua primeira personagem principal em 50 anos de carreira.

O curta conta a história de Firmina, uma senhora que vive sozinha em seu apartamento e presencia um pedido de socorro vindo do apartamento debaixo. O roteiro discute a violência à mulher e amplifica a análise quanto à apropriação da autonomia da mulher acerca de seu próprio corpo.

Ainda que se trate de uma narrativa de opressão, a cineasta subverte a obviedade ao colocar o protagonismo feminino negro como fonte de superação e liderança.

Cinema de representatividade e inclusão

Foto: Luciana Melaragno

Aliás, trabalhar com a quebra de expectativas é o ponto forte do cinema de Izah. Em todos os seus filmes, as personagens são desenvolvidas em camadas que fogem da presunção óbvia, assim como a própria cineasta, que se mantém disponível ao questionamento e transformação dentro de sua integralidade. Sua pesquisa se pauta pela quebra de padrões sociais e comportamentais, expandindo novos discursos e narrativas. E ela não está sozinha nessa caminhada, compartilhando seus conhecimentos com outras mulheres através de cursos capacitadores para aquelas que desejam ingressar na área de produção. Sempre que possível, a cineasta promove encontros pós-exibição de seus filmes como forma de propor a expansão do debate.

As exibições de “O menino da moeda” seguiram este formato e para o seu próximo trabalho, o curta-metragem “Firmina”, que tem lançamento previsto para este ano, a cineasta pretende, além de alcançar festivais nacionais e internacionais, promover encontros e debates para discutir o tema da violência contra a mulher, expandindo cada vez mais seu círculo de atuação e ajudando, através do audiovisual, que mais mulheres sejam donas de suas próprias histórias.

Além de “Firmina”, este ano a cineasta está em fase de captação de recursos para a realização do longa-metragem “O menino da Moeda”, cujo roteiro é baseado no premiado curta-metragem de 2021. O longa se passa três anos após o final do curta e aborda novas questões sociais, mantendo o foco na análise comportamental e na quebra de padrões sociais pré-estabelecidos.

Nesse sentido, o cinema de Izah Neiva representa o puro cinema brasileiro, que retrata a realidade do povo brasileiro. A cineasta garante a representatividade na frente e por trás das câmeras e ainda exerce a essência coletiva do cinema, ao ampliar sua atuação para além do fazer cinematográfico, colaborando para a mudança do paradigma estrutural-colonial do nosso cinema. Izah é uma realizadora para acompanhar bem de perto e, se possível, ao seu lado.