Além de reduzir a insegurança alimentar e nutricional na população, compras institucionais podem fortalecer a produção agroecológica da agricultura familiar

Foto: Arquivo Coorpol

No município de Camamu (BA), mais precisamente no Assentamento Dandara dos Palmares, a produção de alimentos agroecológicos contribui para que estudantes da rede pública de ensino tenham acesso a uma alimentação saudável, diversificada e adequada à cultura alimentar da região. O cardápio variado, com  mais de 50 tipos de alimentos agroecológicos, vai de frutas e legumes frescos a ovos de “galinha do quintal” e produtos derivados da mandioca, milho e cacau.

Toda essa diversidade é produzida por cerca de 50 famílias agricultoras e comprada pela prefeitura municipal por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), um programa do governo brasileiro que repassa recursos financeiros aos estados, municípios e escolas federais para serem utilizados na compra de produtos para a alimentação escolar.

O que nem todo mundo sabe é que, segundo a legislação brasileira que trata do assunto, pelo menos 30% dos recursos repassados pelo governo federal a estados e municípios devem ser destinados à compra de produtos da agricultura familiar.

Assim como o PNAE, existem no Brasil outras iniciativas de governos, tanto federal como estaduais e municipais, que compram alimentos da agricultura familiar e os oferecem gratuitamente à população. Esses alimentos são distribuídos em equipamentos públicos e filantrópicos das redes de assistência social, saúde, ensino e Justiça, como restaurantes populares, cozinhas comunitárias, creches, escolas, asilos, entre outros estabelecimentos. Uma dessas iniciativas de compra pública de produtos da agricultura familiar é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que foi criado em 2003 e, após ser paralisado na gestão passada, foi relançado neste ano. 

Para a agricultora e presidente da Associação Dandara dos Palmares, Maria Andrelice dos Santos, mais conhecida como Del, os benefícios das políticas públicas de compra institucional de produtos da agricultura familiar são inúmeros.

Além de garantir uma alimentação saudável para as pessoas que os consomem, como os estudantes, a venda para órgãos públicos traz renda e segurança alimentar para as próprias famílias agricultoras.

“Quando a gente consegue acessar essas políticas, a gente tem a renda e tem também uma forma de se alimentar melhor. Como é a gente que produz, a gente sabe o que está comendo e de onde veio”, garante.

Agricultora Maria Andrelice dos Santos, presidente da Associação Dandara dos Palmares, em Camamu (BA). Foto: Arquivo pessoal

De acordo com Del, a renda gerada pelas vendas garante mais qualidade de vida e colabora para a sustentabilidade na comunidade, já que as pessoas conseguem tirar seu sustento a partir das atividades produtivas em suas propriedades.

“Eu vejo em outras comunidades que aquelas famílias que não conseguem acessar essas políticas sofrem muito, porque produz, mas toda a produção se perde. Às vezes, até deixam de produzir ou deixam suas terras para ir trabalhar para um terceiro, para um fazendeiro, porque não conseguem vender a sua produção, não conseguem comercializar, e aí ficam desanimadas”, avalia.

O fortalecimento da auto-organização das agricultoras e agricultores é outro efeito positivo destacado por Del, uma vez que, no Assentamento Dandara dos Palmares, todo o processo de preparação para acessar a política é feito de forma coletiva:

“Quando surge essa oportunidade de venda, a gente senta e faz comissões. Tem comissão para fazer o levantamento da produção, outra comissão para conferência dos produtos e tem a comissão de transporte, que é um desafio que enfrentamos aqui na região, porque as estradas são muito ruins e não temos um carro na associação”.

Realidade muito parecida à do Assentamento Dandara dos Palmares é vivida pelas famílias da Região Leste de Minas Gerais, associadas à Cooperativa Regional Indústria e Comércio de Produtos Agrícolas do Povo que Luta (Coorpol).

Na Comunidade dos Diniz, em Manhuaçu (MG), o acesso às políticas públicas de compra institucional também permitiu às famílias melhorarem a sua alimentação e das pessoas que recebem os produtos no município e região.

A segurança de se ter um “canal” para destinar parte da produção facilita a ampliação dos sistemas de cultivo de alimentos, viabilizando uma produção mais sustentável, com diversidade e sem o uso de agrotóxicos.

“Fica mais fácil, porque o mercado é garantido. A produção não é difícil, mas é preciso ter mercado, e tem que ser mercado bom, com preços justos”, destaca o agricultor familiar Flânio Alves da Silva, presidente da Coorpol. 

Assim como em Camamu (BA), o acesso às políticas ainda estimulou que as agricultoras e agricultores construíssem agroindústrias familiares em suas comunidades para processamento de alimentos. Além da venda para os mercados institucionais, os produtos são comercializados em feiras, mercados e redes locais de consumidoras/es.

“Na medida em que vende, vão aparecendo outras oportunidades. E, a partir dessas oportunidades, a gente vai estruturando. A gente vai vendendo, vai movimentando, vai ganhando um dinheiro e, ao mesmo tempo, organizando a comunidade”, analisa o agricultor.

Agricultoras e agricultores familiares da Coorpol entregam alimentos em escolas públicas de Manhuaçu (MG) por meio do PNAE. (Foto: Arquivo Coorpol)

Silva conta que os próximos passos na Coorpol incluem a construção, até o final do ano, de uma biofábrica para preparação de produtos biológicos para serem utilizados no controle de doenças nas lavouras e a certificação da estrutura de torrefação do café orgânico. “Hoje a gente tem o café cru certificado, mas a gente pretende certificar a torrefação, pra passar a vender o café torrado e moído com selo orgânico”, projeta. 

Organização comunitária e incidência política

O fortalecimento dos processos de produção e comercialização de alimentos agroecológicos, conforme ressalta Del, também se dá a partir da construção de laços solidários entre as agricultoras e agricultores e suas organizações.

“Não tem isso de só vender, a gente também faz troca de sementes pra ter semente crioula. A gente troca pra que todo mundo tenha a mesma coisa e pra que todo mundo tenha diversidade. É isso que deixa a gente animada pra dar continuidade na agricultura familiar agroecológica”, reflete.

Agricultoras familiares de cinco comunidades se organizaram para vender seus produtos semanalmente no Centro de Camamu (BA). (Foto: Maria do Carmo / Sasop)

Com a produção e comercialização garantidas e consolidadas, as famílias agricultoras têm ainda mais condições de articular com famílias de outras comunidades e organizações. Como diz Del: “Organizações trabalham em rede, elas não trabalham sozinhas.” E é essa articulação entre as instituições, movimentos e redes da sociedade civil, bem como a participação em comissões e conselhos temáticos, que favorecem o diálogo com parlamentares e gestoras/es públicas/os para que a elaboração de programas e políticas públicas seja baseada nas demandas e realidades dos territórios.

Em Manhuaçu (MG), por exemplo, a experiência das agricultoras e agricultores familiares foi importante para elaborar a Lei Municipal 3705, em 2017, que cria a Política e o Sistema de Segurança Alimentar e Nutricional; e a Lei Municipal 3880, em 2018, que institui o Programa Municipal de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar, inspirado no PAA federal.

“O PNAE, por exemplo, é política federal, com recurso federal. Com o PAA Municipal, a prefeitura pode comprar da agricultura familiar, com orçamento do município, os produtos que são servidos no SUS [Sistema Único de Saúde] e no Cras  [Centro de Referência de Assistência Social]”, explica Silva.

Por meio do PAA Municipal, a Coorpol comercializa para a administração pública alimentos da agricultura familiar que são distribuídos em estabelecimentos do sistema de saúde e da assistência social, além de órgãos da própria estrutura da prefeitura, como as secretarias municipais.