Equipe da força-tarefa de saúde para atender quilombos na zona rural do Maranhão. Foto: Brunno Carvalho

Por Saulo Marino.

O Governo do Maranhão destacou sua força-tarefa de saúde para atuar especificamente em área quilombola¹. Na primeira etapa, 28 cidades estão na zona de cobertura, alcançando 102 comunidades, com expectativa de realizar 7 mil atendimentos por mês, focado tanto em medicina preventiva quanto atendimento imediato. O trabalho de campo começou no dia 2 de agosto. Antes disso, porém, enfermeiros, médicos, técnicos em enfermagem e motoristas da Força Estadual de Saúde (Fesma) passaram por um curso de capacitação que durou duas semanas e abordou os seguintes temas: “Racismo e Saúde no Brasil”, “Política de Igualdade Racial no Brasil”, “Políticas de Saúde no Estado do Maranhão” e “Governo e Cidadania”.

Quilombo, palavra de origem angolana que no Brasil significa “esconderijo no mato onde se refugiavam os escravos”. No de Ponta Bonita, por exemplo, distante 50 km do núcleo urbano de Anajatuba (146 km da capital São Luís), a professora Maria da Conceição Paiva Rodrigues, mulher, preta, 49 anos, conta que seus antepassados foram os primeiros moradores, fugidos de um fazendeiro.

Maria da Conceição Paiva Rodrigues, mulher, preta, quilombola, de 49 anos. Foto: Brunno Carvalho

“Meu tataravô era indígena e sua esposa era negra. Minha avó, que nasceu em 1917, contava que o invasor branco pegou ele, meu tataravô, de cachorro quando ele ainda era pequeno. Essa história veio de geração em geração, história oral.”

“E aí, o que acontece? Em algum momento, lá onde eles viviam, não tinha mais terra pra trabalhar, os que se diziam donos da terra, a maioria brancos, preconceituosos, expulsaram eles. Meu bisavô veio primeiro para o nosso quilombo. A minha mãe veio bem criança montada nos ombros do meu bisavô, e ficaram por aqui. Minha avó começou a criar porcos, fez uma rocinha. Eles vieram fugidos, buscando um lugar melhor pra pelo menos fazer uma roça, pra poder sobreviver, porque lá não tinha mais condição. Depois minha avó trouxe seus irmãos, vieram outros membros da família, foi chegando mais pessoas da região de Anajatuba com o mesmo objetivo de encontrar um lugar para plantar, pra criar”, diz a quilombola.

Segundo Maria, a escravidão para sua família acabou apenas no papel, por isso eles precisaram fugir. As coisas começaram a melhorar no Ponta Bonita, afirma, somente no início dos anos 90, quando os moradores se organizaram juridicamente como comunidade. Foi assim que reivindicaram e conseguiram uma estrada, uma casa de farinha, um poço de água, uma escola municipal. A pressão e o racismo, contudo, continuou.

“Em 1991, quando nos organizamos, veio uma pessoa que era chamado de empreiteiro, que pegava as terras para desmatar, que queria desmatar tudo aqui, e partiu pra cima. Principalmente atrás do meu pai, só não mataram ele porque ele fugiu, assim, por cima duma paredinha que a gente chama jirau de lavatório, ele fugiu lá pro terreiro e correu pro meio do mato. E a gente ficou enfrentando, que a gente não ia sair daqui. Veio até polícia. Nesse dia o seu Manoel [liderança da época] foi preso, levaram ele para Itapecuru. Meu pai, vieram uns homens por ordem do empreiteiro, vieram pra matar ele, mas não conseguiram e ele ainda tá vivo até hoje, graças a Deus. E de lá pra cá a gente sofreu bastante, fomos ameaçados de queimar as nossas casinhas, que era tudo bem simples, era palhoça, um tipo de casa que é coberto de palha, copada de barro, a nossa era tapada de palha mesmo”, explicou.

O episódio, revela Maria, despertou-lhe para a luta. Mãe aos 17 anos, retomou os estudos, cursou o magistério e em 2002 foi aprovada em um concurso municipal para ser professora. Em 2004 passou em história na Universidade Estadual do Maranhão (Uema). Em 2010 fez o mestrado em Estudos Afro-Brasileiros. E, em 2015, concluiu sua segunda graduação, desta vez em pedagogia.

“Desde 1991 estou sempre envolvida, envolvida mesmo, com vontade de vencer, com vontade de viver e de mostrar que a gente tem direito e os direitos são para serem usufruídos. E aí, então, quando foi em 2017, eu fui conhecendo mais a questão da nossa identidade, eu estudei e fui descobrindo a questão dos nossos direitos, da escravidão e tudo mais, e disse ‘gente, nós somos é descendente de quilombolas’. Foi quando eu fiz uma reunião e nós nos autodefinimos o que a gente já era, o que éramos há muito tempo, desde o início da nossa existência: nós somos quilombolas”.

Fesma Quilombola

Equipe da força-tarefa de saúde para atender quilombos na zona rural do Maranhão. Foto: Brunno Carvalho

A equipe da Fesma chegou no Ponta Bonita por volta das 8h da manhã e instalou um centro de atendimento na escola do quilombo, onde os moradores se dirigiram para serem examinados por um médico. Como o agente comunitário do município realizou uma mobilização dias antes, todos estavam informados sobre o dia da consulta. Ali, profissionais da saúde buscam reduzir a mortalidade infantil e enfrentar as enfermidades mais comuns na população negra, como hipertensão, diabetes (tipo 2), hanseníase e glaucoma, como pontua o enfermeiro Rômulo Béliche.

“O projeto presta essa assistência aos quilombos com consultas e atendimentos. Por ser o primeiro contato, nós também buscamos fazer um diagnóstico da situação para que as próximas ações sejam direcionadas, porque cada comunidade tem uma necessidade específica, e o nosso objetivo é focar nessas necessidades para que a gente consiga cumprir o princípio de equidade do SUS”, diz.

Neste dia, cerca de 40 atendimentos foram realizados dentro da escola. Também aconteceu uma reunião com lideranças para conhecer a realidade local. Por fim, quatro pacientes com dificuldade de locomoção receberam a visita em seus domicílios. A mesma equipe da Fesma estará no quilombo quinzenalmente, durante dois dias, pelo período de um ano.

A Força Estadual de Saúde do Maranhão foi criada no dia 2 de janeiro de 2015, num dos primeiros decretos publicados pela gestão Flávio Dino, inicialmente para atuar nos 30 municípios com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado, como parte do programa Mais IDH. Num segundo momento, em 2018, os serviços foram ampliados para outras regiões do estado, incluindo São Luís e Imperatriz. Em 2021, dentro dos esforços para combater a pandemia, a força-tarefa foi acionada para colaborar na vacinação contra a Covid-19 em comunidades ribeirinhas, quilombolas e indígenas. O Fesma Quilombola, novo eixo de atuação da força-tarefa, é desenvolvido pelas secretarias de Estado da Saúde (SES), de Igualdade Racial (Seir) e de Políticas Públicas (Seepp).

“Olha, e o que que eu acho da Fesma vir aqui? Eu acho um avanço. Eu acho que é um reconhecimento pelo que a gente já sofreu, do que a gente luta, e que a gente deve sempre resistir e persistir. É o que nós queremos, mais apoio, mais benefício em relação a saúde, em relação a educação, infraestrutura, atenção para a juventude. Nós queremos mais visibilidade”, completa Maria da Conceição, a quilombola que contou sua história no início dessa reportagem.

Nota:
1. O Maranhão aparece em segundo lugar no Quadro Geral de Comunidades Remanescentes de Quilombos (Crqs) da Fundação Cultural Palmares (FCP), com 590 quilombos certificados e 843 comunidades. Informações atualizadas até 15/09/2020. Consultado em 13/08/2021.