Clandestinidade: lugar de movimento e afeto – uma conversa com Manauara Clandestina
Com um trabalho multidisciplinar, a artista de Manaus vem desenvolvendo criações entre diversas linguagens.
Por Marcelo Mucida, para @planetafoda*
“Esse nome não era meu. Esse corpo eu conquistei.” – diz Manauara Clandestina, ao se apresentar.
Com um trabalho multidisciplinar, a artista vem desenvolvendo criações entre diversas linguagens, sem a pretensão de obrigatoriamente ter que categorizá-las.
Atualmente em Londres para a realização de uma residência artística, Manauara contou um pouco sobre a sua trajetória, os seus projetos mais recentes e a experiência de participar de um processo de pesquisa internacional. Ela é a artista entrevistada desta semana para a editoria #ArtistaFOdA.
Filha de pastores missionários da Assembleia de Deus, Manauara conta que foi através do seu contato com a igreja que pôde começar a explorar mais a sua expressão na arte: “Apesar da igreja ter essa estrutura super opressora para pessoas LGBTs, lá sempre foi um lugar que me acolheu em relação à arte. Meus pais sempre foram grandes influenciadores também para que isso acontecesse. De certa forma, a igreja foi um lugar fértil em relação a uma criança que precisava de informações.”
De Manaus, a artista foi morar em São Paulo, onde pôde reconhecer o seu nome. “Meu nome não é em vão. Manauara Clandestina não é uma escolha de nome em vão. […] Esse nome me assumiu. […] Por conta dos meus pais serem pastores, de certa forma, essa movimentação sempre me puxou para um lado um pouco intenso que é o de não pertencer a lugar nenhum, e de, ao mesmo tempo, sempre ter uma força para estar em movimento, para estar buscando outros terrenos. E isso eu não falo nem só geograficamente. Acho que o que eu tenho feito até hoje de trabalho também tem demonstrado como a gente pode ir se flexibilizando, conhecendo outros processos.”
A partir de então, ela começou a realizar performances na noite paulistana. De lá pra cá, também desenvolveu um trabalho na moda e iniciou uma pesquisa nas artes visuais.
Ao ser perguntada sobre a exposição dos seus trabalhos dos últimos anos (série de videoinstalações e fotografias), Manauara comenta: “Tudo isso ainda é muito recente. Para mim, foi um desafio muito grande até que eu entendesse que eu já estava me movimentando em relação à arte, por conta de muitas questões estruturais. Acho que por conta do racismo mesmo, eu não tinha tanta autoestima de olhar para a minha produção como obras do meu trabalho, da minha trajetória.”
Desde setembro, a artista está em Londres para a realização de uma residência artística que é fruto da parceria entre a Delfina Foundation e o Instituto Inclusartiz, proposta através de uma chamada voltada para artistas do Norte do Brasil. Por lá, ela desenvolve o projeto “Por enquanto 35”, que já havia sido iniciado em São Paulo. Ela é a primeira pessoa da sua família a viajar para fora do país.
Através de registros feitos com uma câmera Polaroid, a proposta traz reflexões sobre os dados que apontam que a expectativa de vida de pessoas trans no Brasil é de 35 anos. A ideia é trabalhar com a efemeridade das fotografias, que vão se apagando com o tempo. “Acho que foi a maneira mais direta que eu pude encontrar de questionar isso. Porque a gente tem sido ceifada muito antes dos 35. Essa é a verdade. Os dados divulgados ainda são muito irreais”.
A residência tem um foco maior na pesquisa, do que na apresentação de um trabalho final, mas Manauara acredita que será importante fazer algo por lá para poder marcar o fim deste ciclo: “Eu acho que é mais uma prova de que, querendo ou não, as travestis vão ter que ser ouvidas. Acho que a gente já foi negligenciada por muito tempo. E a prova viva disso está em todos os lugares.”
Mas o seu trabalho não se propõe a seguir através de uma narrativa de mortes. O objetivo é justamente poder falar sobre conquistas vivas. “Eu acho que é o momento de nós termos a oportunidade de desenvolver nossos próprios retratos. E não só nas artes visuais. De uma maneira política também. Acho que toda vida travesti é política. […] E para mim, é muito precioso poder ver, num país que tanto ridiculariza a existência da travesti, a travesti retomando a sua ancestralidade, a sua história.”
Ao falar sobre política, Manauara também comenta sobre o trabalho desenvolvido pela ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais: “Acho que a ANTRA é mais uma prova do que pode um grupo de travestis unidas. Pode alcançar um nível de comunicação política muito interessante e eu reconheço muito essa instituição como uma dessas fontes de dignidade. De ver a gente se comunicando de uma outra forma. Isso sem dúvidas é uma das coisas que mais me motiva a entender quem eu sou, a respeitar o meu corpo. De entender que eu sou uma travesti preta brasileira mesmo.”
As suas obras imprimem laços de afetividade, com um olhar íntimo e sensível, e contam também sobre a sua experiência de vida – fatores que se relacionam diretamente com o que a artista foi compartilhando durante a entrevista.
Sobre o seu percurso na moda, foi a partir de um convite da estilista Vicenta Perrotta para ser modelo das suas criações, que ela pôde começar a explorar outras possibilidades. Manauara já assinou a direção criativa de diferentes desfiles da estilista, que resultaram em grandes performances.
A artista comentou também sobre as pessoas que integraram estes desfiles: “Desde o início, ficou marcada a importância de que essa performance acontecesse com corpos trans, com corpos negros. E eu sempre busquei trabalhar com isso. A gente sempre buscou juntas trabalhar com isso e vai para além da representatividade. Mostra realmente o que é. […] Eu penso que esse é só o início de ver muita travesti se expressando na moda no Brasil.”
Entre tantas possibilidades, a vida e a obra de Manauara Clandestina são como uma explosão de força e afeto, e pode-se ver que a artista ainda tem muito a desbravar.
Para mais informações sobre os seus trabalhos, é só acessar o perfil no Instagram: @manauaraclandestina
Assista ao desfile de Vicenta Perrotta da temporada de verão 2020, para a 45ª Casa de Criadores, com direção e produção criativa de Manauara Clandestina:
*@planetafoda é a página de conteúdos LGBTQIAP+ produzidos pela rede FOdA, da Mídia NINJA, junto a colaboradores em todo o Brasil.