Entrevista com Célia Xakriabá, primeira mulher indígena eleita no estado de Minas Gerais

Foto Edgar Kanaykõ Xakriabá

“Podemos ter menos tempo de Congresso Nacional, mas temos mais tempo de Brasil”

As eleições deste ano devem fortalecer o movimento indígena. Lideranças dos povos originários foram eleitas de forma histórica, como é o caso de Célia Xakriabá, de 32 anos, primeira mulher indígena eleita no estado de Minas Gerais. Ela teve mais de 100 mil votos e foi a mulher com maior sufrágio na capital mineira. Faz parte da chamada bancada do cocar e defende a participação coletiva dos movimentos em seu mandato: uma representatividade de fora para dentro, e de dentro para fora do Congresso Nacional.

Xakriabá é mestra em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília (UnB) e doutoranda em antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integra diversos movimentos e é uma das fundadoras da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade. Foi assessora na Secretaria de Educação do seu estado e também no mandato da deputada federal Áurea Carolina (PSOL-MG). Seu programa se propõe a “defender as causas ambientais, por justiça social, por representatividade na política e pelo fim da violência contra os povos originários”.

Na entrevista à Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), ela fala sobre a sua experiência durante a COP 27, conhecida como Conferência das Mudanças Climáticas, realizada no mês passado, no Egito, e as expectativas em relação ao governo do presidente eleito Lula. Ela está participando da equipe de transição e defende não só a anunciada criação do Ministério dos Povos Indígenas, mas também a participação desses em outros ministérios, como Meio Ambiente e Cultura, e em órgãos, a exemplo da Funai. Mesmo eleita em um cenário adverso na Câmara dos Deputados, Célia defende que muito pode ser feito no Parlamento em prol das pautas progressistas e democráticas.

Quais foram as suas impressões sobre as resoluções da COP 27?

A COP ainda é um espaço fechado para a participação da sociedade civil, então, às atividades oficiais, não temos acesso. Foi muito importante essa nova configuração com a presença do presidente Lula. Segundo ele, é a última vez que a sociedade civil vai separada [da delegação governamental] porque é importante discutirmos juntos a agenda ambiental mundial. Desde o evento passado, em Glasgow, falamos que não existe solução para barrar as mudanças climáticas sem reconhecer a potência das tecnologias sociais nos territórios indígenas e de povos e comunidades tradicionais. Essa COP marca também um ciclo importante, no qual o Brasil enfrentou quatro anos de retrocessos, com um ecocida, e, no âmbito internacional, perdeu prestígio e protagonismo. Nós, povos indígenas, sustentamos isso lá fora. Em 2019, lançamos uma jornada da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e percorremos 12 países e 25 cidades em 35 dias. Protocolamos no Tribunal de Haia uma ação denunciando o governo Bolsonaro por cometer crime de ecocídio contra a humanidade.

Um dos temas principais este ano foi a questão da alimentação e do financiamento, ficando um pouco mais distante a pauta ambiental em geral. Não dá para falar de combate às mudanças climáticas sem falar das demarcações dos territórios indígenas, que são soluções reconhecidas pela ONU. Se o tema é financiamento, é importante que ele chegue aos verdadeiros guardiões das florestas e biomas. No evento, fizemos uma incidência importante recomendando ao Parlamento Europeu que analise com cuidado a lei antidesmatamento. A lei considera a Amazônia mas não parte da Mata Atlântica, do Cerrado, do Pantanal, a Caatinga e o Pampa também como florestas. E quando não reconhece esses biomas, acaba legalizando o desmatamento. Falávamos da criação de uma lei de rastreabilidade, porque muitos produtos, principalmente commodities do Brasil fora do país, vêm de territórios de comunidades tradicionais e acabam fomentando todo esse processo de violência nos territórios. Essa lei também não considerava a mineração, que tem sido responsável hoje no Brasil por um dos maiores crimes ambientais, como o cometido pela Vale no estado de Minas Gerais, no Rio Doce. A mineração não representa mais que 4% do PIB [Produto Interno Bruto]. Se as pessoas estão realmente preocupadas com dinheiro, é importante desenvolver um consumo consciente e inteligente para não desmatar, já que tem custado muito mais caro.

Dialogamos na COP com vários parlamentares, inclusive está sendo pensada uma caravana do Parlamento Europeu e Reino Unido para o próximo ano junto às mulheres indígenas no Brasil. É muito ter essa abertura enquanto movimento indígena brasileiro e, nessa COP, nós viemos também como parlamentares eleitas. Hoje, no Brasil, estamos com a oportunidade, com a eleição do presidente Lula, de reverter o ecocídio e o genocídio. Somos muito mais que ativistas, porque quando matam uma liderança indígena pelos conflitos territoriais, assim como mataram Bruno [Pereira] e Dom [Philips], isso influi em nós, que somos o próprio meio ambiente com o nosso modo de vida. Nos reconhecer hoje na COP, os nossos ancestrais, perpassa também pelo reconhecimento de que a solução das mudanças climáticas precisa ter a cara de uma humanidade consciente.

Como se deu a articulação e a necessidade dessa comitiva de vocês, que foi bem representativa e, sobretudo, contou com muitas lideranças mulheres indígenas?

Na COP do ano passado, tivemos a maior delegação do Brasil,também com uma representação forte de mulheres. Entendemos a importância de que, quando atacam a terra e o meio ambiente, nos atacam também, sentimos na pele os efeitos das mudanças climáticas. Nós, mulheres indígenas, temos trabalhado junto à mídia a valorização e a importância dos biomas, no sentido de que cada uma de nós representa uma região e um bioma do nosso país na COP. Minas Gerais, por exemplo, é o estado que mais desmatou a Mata Atlântica no ano passado e tudo isso tem um impacto direto nos territórios. A mineração tem atacado os povos e as águas das gerais. Então, trazemos no âmbito internacional também a importância de descolonizar os biomas. Entender que é exatamente a diversidade de ecossistemas que torna o Brasil um país com uma sociobiodiversidade tão rica e potente. É preciso proteger as florestas, as águas e nos proteger, porque somos os defensores desses lugares. Se atingirem nossos territórios e nossos corpos, a humanidade também sentirá suas implicações. A presença dessa comitiva de mulheres indígenas significa também que a pauta climática tem uma força feminina, da terra e das águas. Não dá para falar sobre isso sem escutar também quem é mais impactado e mais faz essa proteção.

Antes do golpe que destituiu a presidenta Dilma, o movimento indígena tinha uma interlocução com o governo federal, mas existiam muitas críticas também. Ocorreram mudanças na conjuntura política de lá para cá. Agora, qual a expectativa com o retorno do governo do PT, que inclusive anunciou um possível Ministério dos Povos Indígenas?

É importante dizer que somos um dos poucos movimentos que, independente do governo, sempre estivemos na linha de frente, mesmo no contexto da Covid-19 ou de governos progressistas. Nós falamos para o Lula, durante a COP, que as eleições nós não ganhamos somente nesses três meses, desde o dia 1º de janeiro de 2019, sempre estivemos nas ruas. Mesmo com um governo reacionário e fascista, em um contexto de pandemia, ficamos acampados mais de 30 dias em Brasília, porque entendemos que, se não morrêssemos pelo vírus, seria pela “passada da boiada” e nos conflitos territoriais. Temos, agora, expectativa e desafio enormes, sabemos que não será tudo fácil, mas vivemos um momento de oportunidade. A campanha de Lula foi pautada no compromisso ambiental, de romper com o garimpo ilegal, realizar a demarcação dos nossos territórios etc. Sinalizamos na COP essa mensagem e, um gesto importante que o presidente Lula poderia fazer, seria assinar a demarcação de cinco terras nos 100 primeiros dias de governo. São demarcações que já estão na mesa e não exigem impedimentos jurídicos, não têm ilegalidades. Então, seria um ato importante, não só para nós, mas também para o planeta, visando à contenção das crises climáticas.

Acabamos de sair, no dia 23 de novembro, de reuniões com a equipe de transição do governo quando tratamos da criação do Ministério Indígena. Foi um momento de oportunidade e construção, discutindo qual seria o seu formato, missão e atribuição. É um momento histórico para o movimento indígena do Brasil, porque também estamos discutindo como será a composição da Funai [Fundação Nacional do Índio], que é responsável pelas demarcações dos territórios. Temos uma oportunidade única de avançar, mesmo entendendo que demarcar seja muito caro, por causa dos processos e ritos, assim como a titulação de territórios quilombolas. Mas vivemos e vivenciamos um momento de muita esperança para avançar, porque não dá para avançar na educação e saúde [indígenas], por exemplo, quando a pauta principal é o território. Sem território, a nossa identidade e nosso modo de vida estão ameaçados. Estamos discutindo também com o GT de Saúde, porque essa é uma agenda importante e faz parte da discussão geral sobre o ministério. O governo precisa acenar também para a presença indígena no Ministério do Meio Ambiente, após quatro anos de ausência com o ministro Ricardo “Males” [Salles], que é o “exterminador do futuro”. Fizemos com a nossa força e a nossa luta essa sustentação nos territórios. Então, queremos e podemos ocupar vários ministérios, como o da Cultura e da Educação. O Ministério Indígena não pode ser um lugar que restrinja a presença indígena. O nosso lugar é em todos os lugares. Precisamos pensar essa política transversal, pensando de maneira identitária, mas também entendendo que a identidade precisa estar em todos os espaços.

Você foi eleita pela primeira vez para compor o Congresso Nacional em uma conjuntura desfavorável para o movimento indígena, na medida em que o agronegócio e o conservadorismo se fortaleceram como um todo, inclusive com personalidades expoentes do bolsonarismo eleitas com expressividade. Qual a sua avaliação sobre essa nova luta?

É um momento histórico e decisivo. As pessoas falavam que se não fosse agora era para depois a minha eleição, e eu falava: é uma luta de contexto, não vamos tê-la tão cedo novamente. Se observarmos a história do Brasil, o governo de esquerda nunca elegeu indígena. O [Mário] Juruna foi eleito [deputado federal em 1982] em outro contexto, e a Joenia [Wapichana] ganhou no governo Bolsonaro. Então, é uma oportunidade sobretudo porque vivenciamos um cenário de profunda violência aos direitos indígenas e à questão ambiental. É uma resposta não só nossa, mas também da humanidade, porque nesse momento significava muito mais que o resultado na urna. Minas Gerais, que tinha 53 deputados, nunca tinha eleito uma indígena para o Congresso Nacional. Conseguimos superar o racismo, assim como Sônia Guajajara em São Paulo. É a primeira vez que vamos chegar com a bancada do cocar. Dos 853 municípios do estado, estamos lotados em 804 e sou a única deputada federal mulher do norte de Minas, além de ter sido a terceira mais votada em Belo Horizonte. São respostas diferentes, não foi somente chegar, e sim o processo de romper com a velha lógica do jeito de chegar. Não fomos apoiados pela velha política tradicional de apoio às prefeituras. Sabíamos que era a hora certa de provocar esse momento e, entendo com muito orgulho, que a nossa eleição passou por um voto de polarização também. Não foi o voto somente progressista que nos elegeu, votaram na Tebet, no Lula, no Ciro e em nós. Até no Bolsonaro! Isso é interessante para observar o que converge. Estão nos perguntando o que nós podemos fazer sendo minoria. Nós, povos indígenas, não somos nem 1% da população brasileira, somos 5% da população do mundo e protegemos mais de 30% da biodiversidade. Nem sempre quem é a maioria está fazendo melhoria, e, se a nossa voz não for suficiente do lado de dentro, vamos continuar convocando o movimento do lado de fora. Porque o poder não são só Executivo, Legislativo e Judiciário, a luta é o quarto poder. Podemos ter menos tempo de Congresso Nacional, mas temos mais tempo de Brasil. Um país que foi totalmente erguido na presença e história dos povos indígenas, mas construiu esse processo de ausência. É muito contraditório e não vai existir como potência política com a nossa ausência. Vai ser desafiador, mas estamos preparados para enfrentar Ricardo Sales. Quem está mais preparado que nós para enfrentar a bancada ruralista?!

Você falou de pautas prioritárias do novo governo com possíveis cinco demarcações. E no Congresso, quais serão as primeiras ações ?

Estamos discutindo a questão do “revogaço” a 407 projetos [do Bolsonaro], mas isso também está dentro do Legislativo, Executivo etc. No Executivo, por exemplo, havia nove atos normativos que precisavam ser revogados. Nosso mandato será de articulação do Legislativo com o Executivo, porque a nossa pauta principal é, sobretudo, a demarcação de terras [indígenas] e titulação de territórios quilombolas. Nosso mandato será de articulação junto aos ministérios, a Funai e ao Executivo de maneira mais geral. Estamos estudando quais serão os dois primeiros projetos mais propositivos da bancada do cocar, para isso, abrimos um processo de consulta pública à sociedade. Também estamos analisando o “desengavetaço” de projetos de lei que estão parados. Fazemos isso não porque não temos projetos, porque desde a campanha apresentamos alguns, mas sim porque queremos ter um mandato diferente, que dialogue de dentro para fora e de fora para dentro.

Muitos indígenas foram eleitos nos últimos anos, qual a sua avaliação do atual momento indígena e sua evolução do ponto de vista da luta institucional?

As candidaturas indígenas cresceram consideravelmente, nas eleições de 2020 teve um dos maiores resultados para as prefeituras e vereanças e, agora, cresceu em relação às de 2018. Não vamos parar por aqui, vamos continuar fortalecendo para os próximos anos a presença dentro das prefeituras e estruturas municipais e estaduais. Entendemos também que esse foi um momento histórico, mas não serão as últimas ou únicas [candidaturas eleitas], a ideia é sempre trazer mais gente. Junto conosco vêm milhares de forças ancestrais e é assim que vamos ampliar essa convocação para a bancada do cocar.