Longa tem direção da premiada cineasta brasileira Carolina Markowicz

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Por Ben Hur Nogueira

Um espectro microscópico tem uma funcionalidade ímpar no cinema. Histórias contadas em ambientações pequenas são capazes de transmitir como a vida que se passa ali seria proposta. Quando películas se passam em um lugar, o lugar em si não importa, o que importa é como fazem esse lugar servir para a história ser materializada e construída. Uma película sobre os séculos coloniais tende a expor problemas de nossa história como a escravidão da mesma forma que películas sobre os anos 1950 tendem a reportar repressões religiosas e sexistas, ou então, uma película sobre os anos 1960 tende a expor como mudanças sociais na juventude iriam influenciar um posicionamento ideológico dos anos seguintes e por aí vai.

Uma ambientação microscópica pode ser interessante para amplificar o macro interno de cada personagem. Ao mesmo tempo que o lugar se permanece estagnado, personagens se demonstram cada vez mais imprevisíveis e isso é o exemplo do thriller “Carvão”, de Carolina Markowicz, onde temos um ambiente microscopicamente estagnado, mas personagens lidando com tensões dilemáticas humanas sobre rupturas de uma sociedade que esconde e alimenta dentro de si o que existe de mais torpe.

“Carvão” explora uma família rural cujo patriarca está bastante doente. A vida pacata dessa família toma um rumo inesperado quando uma oferta de uma agente de saúde nova na cidade é oferecida para substituir o patriarca por um traficante argentino. A natureza torpe do acordo já é chamativo logo de cara e torpeza é algo que essa película tenta sempre  maximizar. A naturalização da violência nesse ambiente e o ambiente particular de cada membro da família é precisamente explorado pela diretora, que utiliza da cinematografia precisa de esboçar três tipos de atividades reativas de cada situação para transpor a mensagem que necessita transmitir.

O primeiro tipo de movimentação que o filme transparece é um modelo usual no gênero de suspense: uma câmera instável, quase sempre usual em situações de instabilidade tanto emocional quanto cotidiana. O ambiente familiar é decerto a atmosfera onde o filme em si impera e, para demonstrar sua sapiência fílmica e para transmitir para a audiência o quão intenso a película tende a se desenrolar, a diretora não utiliza esse modelo de movimentação durante a película toda como se fosse um mockumentary (falso documentário), mas sempre quando necessário.

Um exemplo da utilização desse modelo é nas sequências onde brigas e reviravoltas ocorrem com o traficante argentino que passa a habitar na casa. Sua presença incomoda o marido, quiçá por sua masculinidade frágil ou quiçá pelo fato de sua presença ter culminado no assassinato de uma pessoa. O argentino sempre é acompanhando por movimentações abruptas de câmera como se ele assim mesmo como a situação e a família em si estariam sendo tensos. Essa movimentação é usual em gêneros documentais e demonstra como inerentemente a película traz a torpeza humana como um espectro principal.

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O segundo tipo de câmera que constrói a narrativa da película é a movimentação onde valores incertos são enfatizados, onde a câmera tende a dar uma ênfase a algo sem que isso precise ser dito ou exemplificado com profundidade, algo muito usual no campo cinematográfico de gêneros como thriller ou suspenses. A diretora traz esse tipo de movimentação principalmente quando a criança do casal (Jean Almeida) está tentando entender algo e não consegue devido à sua inocência. Três sequências exemplificam bem como a película lida com isso. Logo no começo, quando a Agente de saúde faz o acordo com a família de substituir o seu patriarca, vemos uma câmera acoplada no carro dela saindo da fazenda da família protagonista e temos o filho do casal observando atentamente o carro sem perceber o que de fato está acontecendo com a família, e isso demonstra a inocência da criança ao mesmo tempo que materializa o distanciamento da criança da trama torpe que seus pais participam, onde quanto mais longe a câmera fica do menino, mais o ambiente é explorado e mais o menino tem uma incompreensão com toda a parafernália. Esse segmento logo no começo da película impõe na audiência a natureza cândida do infante sendo o sujeito mais prejudicado da história. A câmera sendo afastada remete a falta de noção sobre os motivos seguintes que a trama irá desenrolar.

A segunda vez que a trama utiliza desse movimento de incerteza é ainda com o garoto, mas dessa vez no quarto de seus pais, onde eles o obrigam a dormir durante a retirada do corpo de seu avô já que tanto o infante quanto o patriarca costumavam dormir na mesma cama. Aqui temos um trabalho de manuseio de som e imagem. Os ruídos são externos e a movimentação é frontal. Dentro do quarto de seus pais o garoto escuta barulhos cuja certeza para ele é inexistente e a câmera se movimenta para uma direção frontal onde não vemos o que ocorre com exatidão no outro lado, mas vemos o semblante do menino incerto.

E por último, a película utiliza dessa incerteza quando, no final, o infante testemunha um assassinato no seu quintal e sua reação é demonstrada como desnorteada. Aqui, ainda, a diretora aproveita de sua sapiência fílmica para utilizar um elemento sagaz na sua direção de fotografia: um enquadramento do infante durante o enquadramento do menino reagindo à morte, o que torna a cena reativamente mais chocante.

Por último, um elemento fílmico que se torna presente é a da câmera inerte em determinados momentos onde situações reveladoras se desdobram e a partir disso temos o grande diferencial desta película: o alívio cômico.

O alívio cômico é uma estrutura narrativa que utiliza de uma situação cômica ou de um personagem específico que possui uma particularidade humorada para fazer tornar uma obra menos dramática, contudo, a utilização dessa estrutura narrativa pela Carolina Markowicz não quer tornar a obra menos dramática, mas utilizar essa estrutura para ridicularizar as rupturas de uma sociedade que se diz religiosa e conservadora de bons costumes, mas lida o tempo todo com a torpeza e a malícia dentro de seu núcleo interno, além de possuir complexidades e volúpias humanas o tempo todo. Isso torna “Carvão” único, pois não é sobre ser menos dramático ou algo do tipo, mas sobre utilizar da situação onde os personagens se demonstram cada vez mais torpes que a película passa a ser cínica através disso.

O alicerce familiar é algo que é explorado de maneira quintessencial a um drama familiar. O Pai (Rômulo Braga), a Mãe (Maeve Jinkings), a Criança (Jean de Costa Almeida) e o patriarca já ausente. A história não lida com uma retórica pretérita, mas com o agora fazendo-nos tirar nossas conclusões sobre as reais motivações dos personagens. A pobreza leva a mãe a tomar decisões abruptas inconsequentes, a falta da ausência fraternal desenvolve no infante um respeito pelo traficante argentino, o pai esconde sua sexualidade e tem relações sexuais constantes com seu vizinho, o argentino que mal se encontra habituado na trama cogita utilizar de sua malevolência para conseguir o que quer, como por exemplo influenciar a criança da família a traficar cocaína na escola.

Como mencionado anteriormente, o ambiente é estagnado, não se tem uma amplificação do ambiente geograficamente, contudo, temos uma exploração de como o ambiente se comporta, e assim, das reais motivações de cada habitante. Uma sequência que deixa isso nítido é uma cena logo no começo da película onde a Mãe pergunta ao padre se Jesus perdoaria caso algo acontecesse com o pai dela doente. Aqui, a personagem busca ter uma justificativa religiosa para o crime que está prestes a cometer. Ela sabe que está errada, mas busca um consolo espiritual para ter um alívio futuramente.

O humor desta película não é explorado por seus personagens, mas pelas situações que eles promovem. Não é através de monólogos que ações humorosas são feitas, mas através da consequência das ações principalmente da Mãe e do Pai, que basicamente não interagem, apesar de casados, e lidam um com o outro como se fossem sócios de um negócio familiar que é, neste caso, a carvoaria. A Criança é o ser mais inocente da obra, e a diretora faz disso logo uma alegoria. Ele decerto é o mais inocente, mas quanto mais a película avança, mais o infante testemunha situações que fazem este perder sua natureza cândida que ocorre na fazenda de seus pais, tornando-se um observador em meio tantas rupturas que a família passa se naturalizar.

O infante passa a ser a pessoa mais explorada na trama, a princípio por sua natureza cândida, contudo solitária, mas ao longo da película vemos que a sua solidão tem raízes profundas em seu relacionamento com seus pais, quiçá sua própria interpretação que ele tem de seus pais como seres ausentes em sua criação. Uma parte do filme que excepcionalmente exemplifica isso é durante o segundo ato onde a Criança passa a criar um elo paterno com o traficante argentino, começando por jogar bola com o traficante no quintal de sua casa e tendo conversas pessoais com ele.

A conclusão da trama provoca debates sobre moralismo religioso e sobretudo sobre como o cinema bem materializado sabe se comportar ao transmitir como volúpias humanas são trazidas à tona com propostas que tomam rumos inesperados.

“Carvão” não é uma película que lida com comportamentos macroscópicos, mas uma película que lida com o ser humano mais próximo de sua real natureza torpe, onde a torpeza tenta se justificar através da religião, apresentando, portanto, rupturas de uma sociedade completamente disfuncional e discrepante dos valores que julga-se contrariar.

Carolina sabe controlar emoções e transmitir cada ruptura individualmente em uma amplificação microscópica. O humor aqui mora nas situações que cada personagem se apresenta, em cada atitude tomada, em cada desejo movido por um sentimento monetário e em cada volúpia sentida por cada um.

“Carvão” é uma película em que cada detalhe macroscópico deve ser ponderado pelo seu telespectador, é uma película onde a ação e a observação devem estar sendo colineares um ao outro. É um filme sobre um ambiente microscópico influenciado por atitudes humanas em um campo macroscópico, e esse é o tipo de filme que precisamos no cinema nacional.

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