Juntando as cicloviagens de Beto Ambrósio, Fernando Biagioni e Israel Coifman, são mais de 110 mil km em cima da bike, distância que é superior a duas voltas pela Terra. Neste dia do ciclista e o dia internacional da fotografia, eles contam suas histórias inspiradoras

Vittangi, Suécia, 2019. Foto: Israel Coifman

Por Mauro Utida 

Meu saudoso amigo Pica-Pau costumava dizer que a melhor forma de conhecer o lugar em uma viagem é caminhando ou, no máximo, de bicicleta. Ele foi o primeiro ciclista que conheci que montava em sua bicicleta levando o mínimo possível e passava dias em cima da magrela viajando sozinho. Sempre vou me lembrar das histórias de suas aventuras cruzando o litoral paulista e dos perreios pelo caminho.

Depois de um tempo fui me apaixonar por esta prática de cicloviagem e me joguei em alguns “pedal” de longo percurso e procurei saber mais desse estilo que exige dos praticantes a técnica do minimalismo, do “quanto menos melhor”. A tarefa se torna ainda mais difícil quando o planejamento envolve dormir sobre as estrelas em algum campo aberto – o que é preciso separar uma boa barraca e saco de dormir – e quando também o objetivo é documentar a viagem com fotos e vídeos. O peso somado às roupas e alimentos se torna um obstáculo à parte.

Comecei a encontrar referências no Instagram – um oásis para descobrir ciclistas aventureiros e fotos de viagem e lugares. Lá conheci Fernando Biagioni, o mineiro de 38 anos, que teve seu documentário ‘A Volta em Minas’ selecionado para o Rocky Spirit, festival de filmes outdoor que acontece em setembro, só para listar o feito mais recente dele. Foi nesta rede social que também conheci Beto Ambrósio, o araraquarense que deu a volta na América Latina em dois anos e oito meses e contou essa viagem em seu livro Fé Latina. O mais recente dessa turma boa do pedal que conheci, foi Israel Coifman em uma de suas oficinas onde falou sobre sua viagem ao longo de três anos cruzando o norte e leste europeu, finalizando na Ásia. A viagem virou o livro “Mashallah – do Ártico à Ásia de bicicleta”, que acaba de ser lançado.

Estes três caras – que juntos somam mais de 110 mil km em cima da bike, distância que é superior a duas voltas pela Terra – são a nossa inspiração para homenagear o dia do ciclista e o dia internacional da fotografia, comemorado nesta sexta-feira, dia 19. A Mídia NINJA conversou com eles e você pode conferir um pouco mais de cada um abaixo.

Fé Latina

Pedal na Cordilheiras dos Andes. Foto: Beto Ambrósio

Natural de Araraquara e atualmente morando em São Paulo, Beto Ambrósio ( @betoambrosio_ ), 35 anos, fez uma viagem que é sonho da maioria das pessoas que gostam de fazer uma “road trip”, viajar pela América Latina. Ele cruzou o continente em sua bike durante 2 anos e 8 meses. Foram 17 países e 25.160km pedalados. Quando voltou, escreveu ‘Fé Latina’, o diário de bordo com fotos da viagem e encontro com as comunidades locais.

“Foi a maior experiência de liberdade que já provei na vida”.

Mapa do percurso percorrido por Beto Ambrósio. Imagem: Divulgação

Ele saiu de Araraquara em sua bicicleta no dia de seu aniversário de 25 anos (dezembro 2012) e começou descendo para o Sul pela costa do Brasil até a Argentina, onde atravessou a Patagônia e subiu para o Chile com a incrível vista da Cordilheira dos Andes, passando pelo deserto de sal Salar de Uyuni, na Bolivia, acampando sobre as estrelas do derto do Atacama até chegar no Panamá. De lá, continuou subindo pela América Central até chegar ao México, na América do Norte.

Seu retorno foi por Cuba (trecho aéreo) até a Venezuela, onde desceu para a Amazônia, continuou em direção ao Nordeste e desceu pela costa brasileira até chegar dem sua casa no interior paulista como um verdadeiro herói, em uma recepção emocionante por familiares e amigos. Depois da viagem, Beto se tornou pai da pequena Flor, de 3 aninhos, que já o acompanha no pedal sentada na cadeirinha instalada pelo pai na magrela.

Somando todas as viagens de Beto, já são mais de 30 mil km em mais de 3 anos em cima da bicicleta. Parte destes quilômetros rodados está outra viagem especial para o ciclista, a Estrada Real, que virou o seu segundo livro, sobre a emocionante cicloviagem pelo caminho do ouro. Seu próximo livro será sobre sua última cicloviagem, pela Patagônia Argentina. As publicações são cheios de histórias e fotografias. E, ele não quer parar por aqui, seu próximo projetos será um documentário com previsão de lançamento em 2023, sobre uma viagem de bicicleta pelo Brasil. No momento ele busca patrocínio para financiar esse projeto.

Camping selvagem no deserto do Atacama com milhões de estrelas. Foto: Beto Ambrósio

Hoje, o trabalho de Beto gira em torno dessas viagens, que se tornaram o seu projeto de vida e sua profissão. Além da venda dos livros e das fotografias da viagem, Beto ministra palestras em empresas, mini-cursos de fotografia e leva pessoas para viajarem de bike com ele. Neste sábado (20), Beto irá receber a sua nova bicicleta do seu primeiro patrocinador: a Corratec, uma marca de bike alemã. O presente será entregue na feira Shimano Fest, que acontece até domingo (21), no Memorial da América Latina, em São Paulo. Ele estará na parte da manhã conversando com quem tiver interesse em conhecê-lo.

Volta em Minas

Cicloviagem em família para o Uruguai. Foto: Fernando Biagioni

Natural de Belo Horizonte, Fernando Biagioni (@fernandobiagioni), 38 anos, pedala há mais de 30 anos e durante este período já rodou mais de 50 mil km. O mineiro é do tipo que usa a bike como meio de transporte e atualmente mora em uma vila de apenas 200 habitantes, próximo a Ouro Branco, onde tem o privilégio de explorar toda aquela região central de Minas.

As aventuras de Biagioni são contadas em sua coluna no aplicativo Strava. Na última década, Biagioni se dedicou a produções documentais unindo a paixão pelo fotográfia e vídeos junto com as cicloviagens. Na primeira vez que juntou as duas atividades, fotografia e bikepacking, ele viajou para o Uruguai com a esposa e a filha que na época tinha acabado de completar dois anos. A viagem com a família resultou no filme ‘Costanera’.

“Foi um registro para que nossa filha pudesse se lembrar de ter cruzado um país inteiro, a bordo de um trailer rebocado por uma bike”, afirmou. Desde então, pai e a filha que hoje tem oito anos não pararam mais de pedalar. “Em janeiro desse ano, viajamos só eu e ela. Pela primeira vez, ela foi pedalando a propria bike”, diz o pai.

‘Costanera’ foi lançado em 2012 e o filme foi selecionado para o Bicycle Film Festival, onde Biagioni foi o brasileiro a ser indicado neste festival. Ele foi para o festival em Nova York e a partir daquele momento começou a ter mais contato com outras vertentes da bike. “Tudo mudou”, declarou.

Imagem que faz parte do documentário ‘Volta em Minas’. Foto: Fernando Biagioni

A última cicloviagem aconteceu no ano passado com o amigo e parceiro de pela, Marcelo. A dupla atravessou Minas Gerais do extremo norte ao extremo sul, em um percurso de aproximadamente 1.400 km. Dessa experiencia, saiu o documentario “A Volta em Minas”’, premiado no Bikepacking Awards. A produção foi selecionada para ser exibida no festival de filmes outdoor, Rocky Spirit (@rockyspiritfest), que acontece em São Paulo e Rio de Janeiro, na primeira semana de setembro.

A organização do festival anunciou ‘Vola em Minas’ como uma grande expedição que registrou e mergulhou na história, cultura e natureza do Estado. “Minas Gerais é um mundo”, escreveu a publicação do evento. A viagem também resultou em material para um livro que Biagioni planeja publicar.

Biagioni possui outras produções audiovisual. Se ‘Costanera’ registra lembranças da viagem para a filha, ‘Pindorama’ retrata a viagem que fez pela Rota do Descobrimento, roteiro formado por cidades históricas da Bahia, e fala sobre nossos territórios e raízes. ‘Puna’, que rodou por vários festivais fala sobre um território inóspito e como o silêncio pode dizer tanto. Puma foi premiado com medalha de prata por melhor producao independente no portal bikepacking.com.

No momento, ele está editando o vídeo da viagem que fez com a filha em janeiro, mas tem mais projetos em mente.

“Espero que nossos filmes e relatos incentivem outras pessoas a estarem lá fora, desbravando esse mundo em cima de duas rodas. Como costumo dizer, o mais difícil é sair de casa”, diz Biagioni.

Mashallah

Capadócia, Turquia, 2019. Foto: Israel Coifman

Natural de Santos, litoral sul de SP, Israel Coifman (@isra.coifman), 39 anos, percorria a Pamir Highway, a segunda estrada mais alta do mundo, entre o Tajiquistão e o Quirguistão, quando teve um daqueles encontros que provam que não é preciso ter uma bicicleta da moda para realizar grandes sonhos. Lá, a 4.655 metros de altitude, ele conheceu um francês em uma bicicleta estilo barra forte circular. O europeu não carregava alforges muito menos as bolsas de bikepacking, que são feitas para se adaptar à geometria da bicicleta.

Israel percorreu do Ártico à Ásia. Imagem: Divulgação

“Qualquer bicicleta pode te levar a qualquer lugar. Ali estávamos nós dois a poucos quilômetros da China com equipamentos bem diferentes. A bicicleta é o modal mais democrático e inclusivo que conheço”, afirma Israel que fez uma viagem ao longo de quase três anos, percorrendo 27 mil quilômetros, através de 31 países. A viagem feita entre 2016 e 2019 resultou no livro “Mashallah – do Ártico à Ásia de bicicleta”.

A publicação pré-lançada é um recorte desta longa viagem, uma travessia ininterrupta do norte da Europa às montanhas do centro da Ásia. Segundo Israel, a história é o relato de uma jornada que transcende o ato de cicloviajar. “Descrevo a expedição que fazemos através da nossa alma quando estamos abertos e despertos. Mashallah é uma expressão de origem árabe. Significa gratidão, admiração, contemplação pelas bênçãos, benefícios e favores de Deus. É uma das primeiras palavras árabes que um viajante aprende ao entrar num lar muçulmano. O viajante é um potencial hóspede, e o hóspede ocupa um lugar especial no Islã”, explica.

“Quando algum devoto me dizia “Mashallah” eu interpretava como se estivesse no caminho certo. E, na realidade, estava”, diz Israel.

A viagem transformou a vida do jornalista Israel que hoje reside em Paraty (RJ). Atualmente, ele tem o apoio da Spot Brasil e The North Face e produz documentários e conteúdos para marcas, priorizando trabalhar com temas ligados à bicicleta. Israel também faz oficinas para entusiastas por cicloviagens, onde conta histórias de sua viagem. Como os perrengues na Rússia ou a emocionante história da sua busca pela aurora boreal no norte da Europa, acima da linha do Círculo Polar Ártico. A superação de pedalar com uma bicicleta carregada em estradas com muita neve e frio pela Noruega, Suécia e Finlândia, acampando em lugares inóspitos, sendo acolhido pela comunidade local e fazendo amizades, é emocionante. Mas também recompensador, como este momento que ele registrou na Suécia em 2019, como mostra a foto principal dessa matéria.

Pamir Highway, Tajiquistão, 2019. Foto: Israel Coifman

Dicas de cicloviagem

Uma cicloviagem necessita de um bom planejamento estratégico e equipamentos certos que possibilitam mais conforto para o pedal, mas o improviso também é necessário. Os três ciclistas ouvidos pela Mídia NINJA dão dicas para quem pretende se jogar na estrada com sua magrela. Se liga nesses conselhos valiosos.

Beto Ambrósio

Com o estilo clássico em cicloviagens, Beto Ambrósio utiliza alforges e bolsas em cima da garupa dianteira, traseira e bolsa de guidão. Mesmo levando mais bagagem que o bikepacking, Beto procura reduzir ao máximo a bagagem.

“É o estilo de vida mais minimalista possível, onde cada miligrama deve ser muito bem pensado: ‘preciso mesmo dessas duas bermudas? Uma só já é suficiente’. Deve se pensar em tudo!”.

O maior peso que Beto precisa carregar nas viagens é, sem dúvidas, o equipamento eletrônico. Ele utiliza uma Canon 60D e mais duas lentes (18x200cm e uma 50mm f/1.8), um notebook pra editar fotos e vídeos e escrever o livro da viagem (quando ela é uma longa viagem no caso), além da bolsa de cabos e carregadores. Ele também usa drone e mais um celular (Samsung S21 Plus), que uso pra fotografar quase tudo e movimentar as redes sociais.

Acampamento no Salar de Uyuni. Foto: Beto Ambrósio

Com celulares que entregam uma qualidade de imagem absurda, Beto acaba usando muito mais o aparelho do que a câmera por ser mais prático. A máquina DSLR ele usa para fazer fotos que podem virar um quadro ou para conseguir uma qualidade de imagem impecável. “O celular é bom, mas pra fazer grandes impressões já não funciona”, explica.

“O maior desafio é subir tudo pra nuvem ao longo do caminho, então eu levo um HD externo e vou organizando tudo nele (e rezando pra que nada aconteça) e quando encontro um bom Wi-Fi eu subo os arquivos pro Drive”, diz.

Quando o assunto é fotografar, Beto explica que há alguns pontos diferentes de se listar. “De bike, temos que sair bem cedinho para pegar paisagens com sua melhor luz. Além disso, a bike a possibilita parar para fotografar quando bem entendermos, pois o caminho é feito com calma e posibilita observar cada detalhe, então, a criatividade fica super aguçada.

Outro fator destacado por Beto é o contato que a cicloviagem proporciona com as pessoas. “Elas nos recebem de braços abertos, fazem questão de nos ajudar, e pra quem gosta de fotografia documental, é um dos melhores meios de se embrenhar nas culturas no mundo de forma genuína e sem ser invasivo”.

Fernando Biagioni

Biagioni é um entusiasta do estilo bikepacking antes mesmo de saber sobre este termo, que utiliza bolsas feitas para se adaptar à geometria da bicicleta. Nas suas primeiras cicloviagens aconteceram no improviso, amarrando bolsas no selim e guidão e levando o minimo possivel pra otimizar a experiência.

“Na maioria das situações, menos é mais. O grande desafio é prever o que será necessario levar”, destaca.

Hoje, Biagioni usa bolsas especificas para bikepacking. “Elas ficam firmes na bicicleta e quase nao atrapalham a dirigibilidade, principalmente por trilhas. Sao essas bolsas que me permitem passar por caminhos que geralmente so costumava passar de mountain bike”, revela.

Acampamento improvisado. Foto: Fernando Biagioni

Segundo ele, a grande dificuldade é saber levar o equipamento de maneira segura, sem incluir coisas demais. Hoje, ele prefere levar uma única lente de zoom para não precisar ficar trocando e prejudicar o sensor da câmera. “Prefiro lentes com estabilizador pra não precisar levar gimbal. Uso também um quadlock no guidão, que é um suporte pra celular super seguro que me permite desencaixar o aparelho com uma mão só”.

A maior parte das imagens que deu origem ao documentário ‘Volta em Minas’, foi gravado com o celular, informa o ciclista mineiro. “Ter o equipamento em mãos é extremamente importante para os momentos espontâneos de encontros e situações. A câmera costumo levar numa pochete para que esteja sempre em maos, mesmo que esteja fora da bike. O drone, levo numa bolsa que fiz que não chama atenção”, informa.

Pra ele, o equipamento ideal é uma câmera mirrorless que são mais compactas, com uma lente que seja equivalente a uma 24-70mm, um bom iphone e o drone (de preferência mini) e um bom powerbank.

Israel Coifman

O estilo de cicloviagem de Israel é focado na contemplação interna e externa. Ele não se apega em rótulos dados para a maneira de pedalar e viajar. “Gosto de ir devagar e apreciar a paisagem e os encontros. Para mim é importante estar preparado para todas as situações climáticas e ter espaço para carregar mais comida e água que o necessário. Ter uma barra de chocolate a mais em um dia duro de viagem ou água sobrando em regiões inóspitas são luxos que não abro mão”, conta.

Salar de Uyuni, Bolívia, 2017. Foto: Israel Coifman

Ele destaca que equipamentos modernos são mais leves e trazem conforto e segurança, porém são mais caros. Mas as adaptações que são mais baratas podem aumentar o nível de perrengue da experiência. Por isso, ele viaja com alforges para poder levar barraca, saco de dormir, equipamentos de camping, roupas, ferramentas, equipamentos fotográficos e comida.

“A configuração de bagagem depende da duração da viagem, do clima e da região. Mas uma coisa é certa: mesmo que você seja um acumulador, viajar de bicicleta vai te convidar a experimentar uma forma minimalista de viver”, diz.

Mesmo com a evolução dos smartphones por ser mais leve e fazer fotos incríveis, além de outras funções importantes para uma viagem, como o uso do GPS para navegador e ter acesso à internet, Israel ainda prefere usar uma máquina fotográfica DSLR.

Ele costuma levar a câmera e lentes numa bolsa de guidão que, por meio de um extensor, não recebe toda a vibração da bicicleta. A parte interna da bolsa é preenchida com um acolchoado para proteger ainda mais os itens. Já as baterias, cartões, cabos e itens menos sensíveis, ele leva num compartimento em um dos alforges. Se for o caso de viajar com um notebook, ele usa um case especial e coloco o computador envolto de roupas para evitar que o aparelho também receba vibrações.

“O olhar é calibrado quase que a cada pedal girado. Viajar de bicicleta é um prato cheio para a fotografia nem tanto pelas paisagens, mas porque a nossa sensibilidade fica muito aflorada. A foto te procura e não é raro estar na hora e local certos.”

Israel usa uma Sony a7iii e ainda está em busca da lente ideal, algo versátil e que entregue qualidade. “Cheguei a viajar com uma teleobjetiva prime 70-200 2.8, uma 35mm 2.8 e outra fisheye 12mm, sem falar no computador, tripé e microfone. Nas futuras viagens gostaria de ir apenas com uma lente e com o drone, porque sim, o drone veio para ficar. Com o drone podemos ver de outra perspectiva o local onde estamos e pode, inclusive, transformar a experiência”, destaca.