Foto: Mídia NINJA

Ainda hoje pouco sabemos sobre como o período militar afetou a população indígena brasileira. O relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV), finalizado em 2014, indica que, apenas na investigação de dez povos, foram estimadas mais de 8 mil mortes decorrentes do governo militar. No caso do povo Yanomami, segundo a comissão, não há um número oficial de mortos, mas se estima que chegue aos milhares.

A tomada das terras indígenas para ampliação da fronteira agrícola e para exploração mineral e de energia foi um dos eixos do Plano de Integração Nacional dos militares na época da ditadura. “No processo de construção de indústrias, hidrelétricas e novos sistemas de comunicação, os povos indígenas passaram a ser vistos como um empecilho para o desenvolvimento econômico do país, uma vez que em muitos casos os mesmos estavam localizados em áreas de interesse do governo”, é o que conta o artigo Indígenas na Ditadura Militar: relatos de violência aos indígenas do Paraná durante o período da ditadura no Brasil publicado em 2020 pela Universidade Estadual de Maringá e que teve como referência o relatório da CNV.

A investigação sobre as mortes dos indígenas brasileiros foi publicada no capítulo do relatório denominado “Violações de direitos humanos dos povos indígenas” de responsabilidade individual da psicanalista Maria Rita Kehl.

Durante uma audiência pública realizada na Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais, no último dia 25 de abril, na Câmara dos Deputados em Brasília, representantes indígenas se reuniram com o objetivo discutir a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade (CNIV) para apurar crimes do regime militar (1964-1985) contra os povos indígenas.

“A Comissão da Verdade não conseguiu se debruçar sobre a questão indígena, apenas iniciou os trabalhos e, olhando apenas para 10 etnias de maneira superficial, por isso que se faz necessária a criação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade”, apontou Marcelo Zelic, membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo.

Marcelo apontou ainda que a estratégia entre o governo dos militares e o governo Jair Bolsonaro, também com forte presença de representantes das Forças Armadas, foram similares. Expulsão dos territórios e falta de assistência de saúde, que levaram à dizimação do povo indígena.“A saúde indígena foi utilizada como uma arma, uma estratégia de ocupação territorial pelo enfraquecimento da saúde das comunidades. Isso é um crime bárbaro, contra a humanidade. É o uso da saúde como essa ferramenta. Isso é parte da cartilha que aparece quando você olha os documentos do passado”, disse.

A presidente da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Joenia Wapichana, primeira indígena a comandar o órgão, confirmou na audiência a disposição do governo para que “haja investigação e reparação”. Ela disse: “A Funai está à disposição para ajudar nesta abertura de documentos, para que haja reparação e que essa política integracionista seja rompida de uma vez por todas”, afirmou Joenia.

Durante a audiência também houve depoimentos de histórias que ainda não foram contadas sobre a ditadura, como a da indígena Sueli Maxakali, filha de um relacionamento forçado pela ditadura militar .“O capitão Pinheiro abraçava os indígenas, parecia amigo, depois ele mesmo abusava das mulheres. Muita gente do meu povo foi torturada, precisou tomar medicamentos para aborto, contam as mulheres mais velhas” relatou Sueli, que vem trabalhando na tradução e coleta desses depoimentos junto aos povos indígenas.

Outra pessoa presente na audiência foi o jornalista Rubens Valente, autor de “Os Fuzis e as Flechas”, lançado em 2017 pela editora Companhia das Letras.Há três décadas o jornalista trabalha com a temática, percorrendo o país atrás de histórias apagadas pelo tempo e pela censura “aonde eu ia, algum indígena, algum antropólogo, ou indigenista me contava uma história da ditadura”, lembrou o repórter.

Rubens Valente diz que o mais chocante de tudo que apurou e escreveu nestes anos foi saber que essas histórias nunca tinham se tornado públicas. “Nós nunca aprendemos isso na escola, eu nunca tive aulas sobre os Marãiwatsédé, sobre o genocídio dos Waimiri-Atroari, sobre a caminhada forçada dos Araweté, quando indígenas morreram, sobre o grande surtos porque a ditadura decidiu fazer contatos”, endossando a necessidade da criação de uma comissão para que estas histórias não se tornem conhecidas e que seus danos possam ser reparados.

Via InfoAmazônia