Texto por Mídia NINJA

A Mídia Ninja acompanhou o segundo “Toxic Tour” organizado por lideranças da Ilha de Maré. A proposta é denunciar a contaminação industrial, convidando ambientalistas, acadêmicos, jornalistas, alunos e todos os interessados para uma visita à Baía de Aratu, onde navegamos passando pelo Porto e complexos industriais. A visita é conduzida pelas próprias pescadoras, que ao longo do trajeto narram a história de seu povo, sua luta e debatem sobre os impactos ambientais e sociais sofridos e formas de resistência.

Salvador e o Recôncavo Baiano são famosos por seu mar azul e suas belas praias. A Baía de Todos os Santos inspira poetas, moradores e viajantes. Suas águas abrigam uma diversa fauna, dos pequenos crustáceos aos grandes pescados.

Ao longo da porção da costa soteropolitana muitos bairros formaram-se: de Água de Meninos, famoso pela Feira de São Joaquim, à São Tomé de Paripe, já na divisa com o município de Simões Filho. Esse trecho, também conhecido como subúrbio ferroviário, encanta por suas belezas naturais, pela riqueza cultural e pela resistência de seus moradores. Forma-se um quase que contínuo de comunidades interconectadas que compartilham o abandono do poder público e dificilmente um turista chega a conhecer esta outra, contraditória, face da cidade.

Na orla entre os municípios de Salvador, Simões Filho e Candeias, a Baía de Todos os Santos (BTS) dá lugar à baía de Aratu. A Ilha de Maré está ali rodeada por manguezais intercalados por belas praias e mar calmo e posição estratégica, pois permite fácil acesso às praias vizinhas no continente, assim como às outras ilhas propícias para a mariscagem, como Madre de Deus e Ilha dos Frades.

A comunidade tradicional é formada por pescadores e marisqueiras que do mar e do mangue, retiram de forma sustentável seu pescado, mariscos, ostras, siris e caranguejos. Nas porções de mata, extraem frutos, sementes e outras matérias primas para alimento e artesanato.

A partir da década de 50 com a industrialização baiana, foram instaladas indústrias consideradas indústrias-mães, ligadas a área petroquímica para que então atraíssem indústrias derivadas. O plano deu certo: chegou a Refinaria Landulpho Alves (RLAM) e posteriormente com consolidou-se o Complexo Industrial de Aratu (CIA), o Centro Industrial do Subaé e o Complexo Petroquímico de Camaçari (COPEC) além do Porto de Aratu-Candeias, que hoje é responsável por 60% de toda a carga movimentada em modal marítimo na Bahia, portanto possui grande importância para a economia da Bahia.

Foto: Mídia NINJA

O progresso chegou trazendo fome, miséria, desemprego e dor. Implementado sem a consulta prévia e ignorando os impactos óbvios à natureza e todas as comunidades do entorno.

Mas não demorou para que as comunidades circunvizinhas, dependentes do equilíbrio do rico ecossistema, começassem a sentir os impactos do fluxo de embarcações, aterramento de manguezais, dragagem que reviraram o fundo do mar, gases expelidos, vazamentos de óleo e invasão de espécies marinhas trazidas pelos navios e, sobretudo, a contaminação pelo lixo industrial.

O mangue desempenha função importante no aporte de matéria orgânica para o estuário e oceano. Isto é, as folhas, sementes e detritos naturais que vêm de sua vegetação vão parar na água e serão nutrientes importantes para a manutenção da cadeia alimentar no ambiente marinho. Além disso, assume um papel de berçário dos animais. Não somente de peixes, mas muitos outros animais, inclusive aves marinhas, contam com o mangue para se reproduzir e é ali que os recém-nascidos irão passar o primeiro ciclo de suas vidas.

As comunidades de pescadores compreendem este ciclo, carregam consigo o conhecimento inerente à sua cultura ancestral, passado entre gerações. Na época certa, pescam, e retiram da lama e raízes do mangue os mariscos e ostras que serão a base de sua dieta e sobrevivência.

Degradar o mangue significa, portanto, degradar toda a cadeia alimentar e uma complexa rede de interações entre animais e plantas e privar esses povos da base de seu sustento.

Diversos estudos realizados e agora um mais recente conduzido pela professora da Universidade Federal da Bahia Neuza Miranda, previsto para ser publicado esse ano, mostram que a poluição do mar e das praias têm ocasionado acúmulo de metais pesados em toda a cadeia alimentar da região.

As marisqueiras e pescadores, que, por sua vez, contam com o pescado e frutos do mar como principal fonte proteica na sua dieta, acabam por ingerir também o metal pesado, que se acumula em seus corpos para o resto da vida, sendo impossível de serem eliminados.

O segundo a pesquisadora Neuza Miranda o estudo abrangeu 117 crianças nos 7 vilarejos da ilha e provou que “90% das crianças estão contaminadas com mais de 10 microgramas de chumbo por decilitro de sangue, acima do preconizado pela Organização mundial da saúde. Na região oeste e sul, comunidades Praia Grande e Santana.”

Além do chumbo também foi detectada contaminação com cádmio “No Leste em Bananeiras encontrei no sangue delas níveis elevados de cádmio metal considerado carcinogênico para o ser humano, também encontrei o pescado contaminado, marisco e peixes, com os mesmos metais chumbo e cádmio.”

Chama a atenção que uma situação tão alarmante de degradação ambiental e violência contra a vida e saúde de pessoas não tenha a devida repercussão seja política, judicial ou midiática. Não por acaso, tratam-se de vidas negras, de mulheres e homens pretos, grande parte quilombolas.

É evidente a desigualdade na destinação de dejetos industriais. A instalação de indústrias altamente poluentes, se encontram na maioria dos casos em localidades pobres e de população negra. Da mesma forma, bens naturais – também chamados de recursos naturais – são apropriados de forma desigual, excluindo comunidades negras tradicionais e a população pobre do direito a usufruir desses bens. Esta conjuntura expõe um fenômeno que pode ser chamado de racismo ambiental.

O combate ao racismo ambiental não pode ser entendido sem que também seja exposto e analisado de forma crítica o racismo institucional que viabiliza tais políticas discriminatórias. À medida que escolhas políticas, atos normativos, e práticas burocráticas passam a incidir negativamente e repetidamente sobre a população negra, o lucro da exploração dos recursos está concentrado nas camadas privilegiadas da sociedade, que é branca.

No contexto do estado da Bahia, grande parte destas comunidades ribeirinhas são quilombolas e estão inseridas no cenário de conflitos associados ao racismo institucional que data desde a colonização do Brasil e processos de escravização até as políticas de expropriação de terra dos dias atuais.

Marizélia lopes e Eliete Paraguassu, marisqueiras, lideranças da Ilha de Maré e parte do MPP – Movimento de Pescadores e Pescadoras artesanais. Foto: Mídia NINJA

Segundo dados do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), o estado da Bahia totalizou, em meados de 2018, 292 processos abertos de regularização fundiária de terras quilombolas. Na Baía de Todos os Santos, muitas comunidades pesqueiras quilombolas atingiram a etapa necessária de registro na Fundação Cultural Palmares, certificando seu reconhecimento como comunidade quilombola, mas em quase sua totalidade seguem aguardando pela efetivação da demarcação e titulação de seu território.

Na região da Baía de Aratu as comunidades de Praia Grande, Bananeiras, Porto dos Cavalos, Martelão e Ponta Grossa localizadas em Ilha de Maré deram abertura no processo em 2008 e a comunidade do Tororó, em São Tomé de Paripe, Salvador, abriu seu processo junto ao INCRA em 2011. Todas aguardam o desenvolvimento do processo e seguem na incerteza da proteção ao seu território e bens naturais. Cabe lembrar que estamos falando de direito existente desde a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Organizadas em associações, pequenos e grandes movimentos, e grupos militantes, lutam pelo sustento; pela saúde ameaçada por um inimigo invisível, que envenena as crianças pela comida e pela água; e enfrentam diretamente grandes empresas milionárias que ameaçam e tentam de toda forma descredibilizar quem se levanta para resistir.

Em 2016 foi lançado o documentário “No Rio e no Mar”, dos diretores holandeses Jan Willem Den Bok e Floor Koomen, com participação decisiva de lideranças comunitárias da Ilha. O filme, premiado internacionalmente, expõe a luta contínua de Marizelia Lopes e Eliete Paraguaçu, quilombolas, pescadoras e militantes pelos direito de seu povo e do meio ambiente. E em 2018 ocorreu o pré-lançamento do documentário Aratu Sem Azul, no Fórum Social Mundial, produzido pela Associação de Pescadores e Marisqueiras do Espaço Quilombo, em São Tomé de Paripe. A obra narra nas palavras de pescadoras e pescadores, além especialistas e pesquisadores, os impactos da degradação ambiental para as vidas de algumas das comunidades que ali habitam e retiram seu sustento. O lançamento do documentário completo está previsto para agosto de 2019.

Nas palavras do Movimento de Pescadores e Pescadoras Artesanais, invocado durante a visita:

“No rio e no mar, pescadores na luta!”