Os quarteirões das moradias possuem o nome de Labor City, cidade da mão de obra

Conjunto habitacional de Asian Town, em Doha. Imagem: Creative Commons/Wikimedia

Por Alex Fravoline

Dizem que uma imagem vale mais que mil delas. Com certeza, o Catar entende bem isso e se vende como um país onde o luxo e a riqueza são apresentados em seus prédios e demais construções. Por meio da Copa do Mundo, o país ganhou a oportunidade de estar sob os olhares do mundo inteiro e montou a edição mais cara até então, podendo chegar a 1,17 trilhão de reais, de acordo com a Forbes. Porém o foco aqui é sobre um bairro da capital chamado Asian Town, situado na zona industrial e com um conjunto habitacional que abriga operários que trabalharam nas construções de estádios. O que choca aqui é que nenhum deles conseguiu ir aos estádios que fizeram depois de prontos, nem passaram perto. Uma reportagem dessa semana expôs uma imagem do país diferente da qual nos apresentam e ficamos acostumados.

A matéria da BBC de Londres explora um Catar que não é falado e que possui injustiças. Nem todos em Doha estão em estádios ou nas áreas de torcedores da FIFA Fan Fest para assistir aos jogos; há pouco mais de 70 mil migrantes em Asian Town que se reúnem em uma arena de críquete da região para ver os jogos em um telão. Moradores estes que estão assistindo uma partida em estádios que construíram e ainda não possuíram a chance de testemunhar um jogo da Copa. Antes de tudo, é bom pontuar que todos são trabalhadores imigrantes. Um deles relatou que possuem dificuldades para as áreas de estádios, pois precisam de um “Hayya Card”, um tipo de autorização que eles não podem pagar. O Catar é um país caro e a maioria desses operários ganham pouco mais de um salário mínimo, atualmente o equivalente a 275 dólares. Mal dá para economizar e o pouco que sobra, destina-se aos familiares desses integrantes. O que restou foi assistir do bairro mesmo.

Moradores de Asian Town assistem as partidas em um telão na arena do bairro. Imagem: José Carlos Cueto/BBC

Embora quem leia a matéria se indigne com as injustiças, muitos são gratos ao governo do país. Vários entrevistados disseram estar satisfeitos com suas vidas quando comparadas com o que deixaram para trás em seus respectivos países. Um trabalhador nepalês reforçou: “As empresas para as quais trabalhamos nos pagam pelo alojamento e nos dão vales para comer. Dentro da Labor City, há supermercados e um hospital. Estamos muito gratos”. Porém estes mesmos gratos também admitem que o que ganham nem sempre é suficiente, preferindo ficarem isolados no bairro para não desperdiçarem um dinheiro que ajuda suas famílias, que ficaram em suas cidades natais. “Estamos no Catar para ganhar dinheiro e voltar para casa. Quero ficar 10 anos, mesmo que meu contrato seja por dois, economizando e mandando dinheiro para minha família” relata John, imigrante de Gana.

O bairro da mão de obra

A Zona Industrial de Doha é o maior complexo fabril do Catar. Milhares de trabalhadores vivem nesse distrito em habitações precárias entre uma vasta extensão de fábricas e armazéns. Imagem: Pete Pattisson/The Guardian

Asian Town é localizada no distrito industrial da capital e já chamou a atenção da imprensa internacional em outras ocasiões. Abriga o que chamam de “shopping para imigrantes”, ou seja, um centro comercial com lojas populares e mercadorias mais baratas pensado para os trabalhadores que se instalaram no país, um contraste com os luxuosos estabelecimentos do centro de Doha.

A zona residencial do bairro possui uma criação polêmica: nasceu em 2015 sob forte pressão internacional devido a denúncias sobre as condições precárias dos trabalhadores da construção civil. O país lidera o ranking de mortes de operários imigrantes durante uma copa. As autoridades catarianas admitiram que houve entre 400 a 500 mortes, sendo possível que este número seja bem maior. “Vivemos e trabalhamos como escravos. Banco meus irmãos menores em Uganda, para que comam e estudem”, diz o jovem ugandês Moses, um dos trabalhadores ouvidos pela matéria da BBC. “Trabalhamos em condições que nenhum ser humano deveria trabalhar. As temperaturas são altas e trabalhamos em horários que não combinamos, até 14 ou 15 por dia”.

Quarto em um dos prédios do conjunto habitacional: a privacidade se mostra somente nas camas com cortinas. Imagem: Warren Little/Getty Images

O clima desértico faz com que a periferia da cidade fique desvalorizada. Sem a autorização para andar em áreas turísticas, fica difícil até para quem pensa em ir andando. A matéria traz a informação de que o complexo é cercado por grandes rodovias que dificultam a caminhada, além é claro, do clima que desanima qualquer ideia de caminhada.

Os quarteirões das moradias possuem o nome de Labor City, cidade da mão de obra. A entrada do conjunto habitacional é vigiada, com um muro de quatro metros e dezenas de câmeras. Muitos dormem em quartos para quatro pessoas, embora o entrevistado Moses assegure que em alguns vivem até 16. O complexo também conta com mesquitas, lavanderias, academias e lanchonetes. Em toda zona industrial, estima-se que moram 310 mil pessoas, muitos são migrantes menos qualificados e poucas são mulheres, apenas 0,5% dos moradores.

Quarto em um dos prédios do conjunto habitacional: a privacidade se mostra somente nas camas com cortinas. Imagem: Warren Little/Getty Images

O que chama atenção é o estado de críquete situado em Asian Town, esporte que utiliza bolas e tacos e nascido na Inglaterra no século XVI, atualmente popular em países de colonização britânica, especialmente Índia e Paquistão. A arena é o principal lazer dos moradores da região, onde além dos jogos, também são organizadas “festas de críquete” em seus dias de folga. “Às vezes, jogamos por até 10 horas. Adoramos críquete”, diz um trabalhador paquistanês à BBC. É nesse mesmo estádio onde os moradores também se organizam para assistir aos jogos da Copa. Basta um telão que todos vão para a grama sentar e conferir uma partida feita em estádios que eles mesmos construíram e que não podem chegar perto. A sensação que fica é de ser proibido de desfrutar o que foi montado com o seu próprio suor.

Texto produzido para cobertura colaborativa da NINJA Esporte Clube