A fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos. Ultraprocessados tomam conta das refeições na escola

Foto: Agência Brasil

Por Jessica Siviero, publicado originalmente na Colabora

Outubro é o mês das crianças. É também o mês em que se comemora o Dia Mundial da Alimentação (16/10), o da Agricultura (17/10) e o Dia Nacional da Alimentação na Escola (21/10). São datas importantes que, conectadas, reforçam a oportunidade da reflexão sobre o que está sendo posto à mesa. Você já pensou sobre a qualidade dos alimentos a que seus filhos e filhas, ou as crianças ao seu redor, estão expostas? A que tipo e quantidade de comida estão tendo acesso? O cenário, muitas vezes, é aterrorizante e – por mais que não apareça com a devida relevância nas discussões eleitorais – precisa ser debatido.

A fome dobrou nas famílias com crianças menores de 10 anos, passando de 9,4% em 2020 para 18,1% em 2022. Segundo os dados do último VIGISSAN, na presença de três ou mais pessoas com até 18 anos de idade no grupo familiar, a fome atinge 25,7% dos lares. Ainda de acordo com inquérito, 60% dos lares em que vivem ao menos uma criança ou adolescente sofrem com alguma modalidade de insegurança alimentar – e esse número sobe para 82,5% nos lares com 3 ou mais crianças e adolescentes.

Na hora de fazer as contas, para a alimentação caber no orçamento, a saída das famílias é recorrer cada vez mais aos alimentos que têm os preços mais acessíveis, os quais, infelizmente – e por fatores completamente questionáveis – são os ultraprocessados, aqueles cheios de ingredientes adicionados, como gorduras, sal e açúcares e com baixíssimo ou nenhum valor nutricional. Assim, “sucos” de saquinho ou caixinha, biscoitos, refrigerantes, nuggets, entre outros, ocupam o lugar insubstituível de frutas e verduras, raízes e grãos, tão fartos em nossa agricultura.

Conforme o Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani) de 2019, a cada 10 crianças brasileiras com entre 2 e 5 anos de idade, mais de 9 consomem alimentos ultraprocessados com alta frequência. Isso é muito preocupante.

Uma alimentação de qualidade e considerada adequada é aquela em que prevalece, no dia a dia, o consumo de alimentos in natura, como grãos, legumes, frutas, verduras e proteínas, de preferência, cultivados sem agrotóxicos e sem adição de conservantes ou produtos químicos que lhes garantam maior durabilidade no transporte. Uma dieta equilibrada, com diversidade de nutrientes, vitaminas e minerais, é imprescindível para o crescimento saudável e para o bom desenvolvimento cognitivo de crianças e adolescentes.

Tal dieta, além de imprescindível, é totalmente viável. Mas não há como cogitar a viabilidade dessa alimentação saudável, adequada e justa para as crianças e suas famílias sem a real reflexão sobre o modelo de agricultura vigente no país. Para que seja possível à maior parte da população brasileira acessar alimentos in natura, livre de substâncias cancerígenas e causadoras de diversos males à saúde, é urgente e fundamental o apoio à pequena agricultura e à transição agroecológica na agricultura familiar.

Não cabe aprofundar aqui o modelo agroexportador brasileiro, mas um breve cálculo ajuda a visualizar a necessidade de repensarmos o desenho: enquanto mais de 125 milhões de brasileiros e brasileiras enfrentam algum grau de insegurança alimentar (seja porque não têm nada para comer ou porque comem somente alimentos de baixa ou nenhuma qualidade nutricional), o Brasil já exportou 203 milhões de quilos de carne de boi somente até setembro deste ano (2022).

Se toda essa carne fosse redistribuída para a população, cada pessoa teria recebido quase mil quilos de carne de boi.

Obviamente, a ideia não é sugerir que isso seja feito. Mas evidenciar a obscena discrepância de investimento dos governos para a agricultura monocultora voltada à exportação e para o fortalecimento da produção que realmente atende e alimenta o consumo interno brasileiro, e nossas crianças, de forma saudável.

Não à toa, nesse momento, entidades brasileiras, incluindo a ActionAid, estão em campanha para que o Congresso Nacional reveja a canetada do presidente da República que cancelou reajuste de 34% para o Pnae, cujos valores estão estagnados desde 2017. O Pnae é o programa que garante o prato mais adequado e saudável do dia para grande parte dos estudantes da educação básica pública, especialmente porque aos menos 30% dos recursos financeiros repassados ao programa devem ser utilizados para a aquisição de alimentos da agricultura familiar e suas associações e cooperativas, destacando a prioridade dos assentamentos da reforma agrária, comunidades tradicionais indígenas e quilombolas.

Na contramão do que se faz hoje com o Pnae e outras medidas, a saída para uma alimentação segura para nossas crianças e adolescentes é o fortalecimento das políticas públicas de incentivo à agricultura familiar. O Estado deve ser um parceiro dos agricultores e agricultoras, garantindo assistência técnica e suporte para distribuição e comercialização de alimentos, o que também é fundamental para garantir a renda dessas famílias. Mais do que nunca é urgente a adoção de políticas de redistribuição de renda (o que garantirá acesso aos alimentos às famílias de menor renda) e de compra e distribuição institucional de alimentos. É fundamental também derrubar os incentivos fiscais que fazem com que seja mais barato comprar um refrigerante do que um suco natural. Mas, esse ponto, deixo para um próximo texto. Até breve.

Jessica Siviero é Cientista Social e mestre em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA/UFRRJ). É integrante do Grupo de Estudos em Mudanças Sociais, Agronegócio e Políticas Públicas (GEMAP/UFRRJ) e especialista em Justiça Climática na ActionAid no Brasil.